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POLÍTICA EXTERNA
Espanhol, que virá ao Brasil na terça, diz que seu país "fez o que tinha que fazer" na guerra do Iraque
Lula não administrará sonhos, diz Aznar
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MADRI
O presidente do governo espanhol, José María Aznar, chega na
terça-feira ao Brasil com uma visão profundamente pragmática
do que será o governo Luiz Inácio
Lula da Silva:
"Quando alguém chega à Presidência, seja na Espanha, seja no
Brasil, seja em qualquer país, tem
que administrar a realidade. Não
administrará sonhos. Pode criá-los. Não administrará utopias.
Pode pensá-las".
Aznar acha que essa é a orientação de Lula, com o qual o governante espanhol se reunirá na
quarta-feira, para levar adiante a
idéia de "relações estratégicas"
entre Brasil e Espanha, definidas
na visita que o mandatário brasileiro fez a Madri em julho.
Não tão estratégicas, no entanto, para que Aznar anuncie, desde
já, apoio à pretensão brasileira de
ocupar um posto permanente no
Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Nem para defender a eliminação ou ao menos a redução do
protecionismo agrícola europeu,
reivindicação permanente do
Brasil e do Mercosul.
Cauteloso, Aznar naturalmente
resvala para a evasiva quando se
trata de analisar situações como a
da Argentina, país em que o governo está em rota de colisão com
as empresas espanholas, ou a da
Bolívia, que acaba de mudar de
presidente pelo grito das ruas.
Mesmo assim, o presidente do
governo espanhol (mais habitualmente tratado, no Brasil, como
primeiro-ministro) deixa claro
que seu entusiasmo por Lula é
bem diferente do que o que sente
pela Argentina e do que o seu temor de que haja retrocesso democrático na Bolívia.
Aznar é dono de um ato raro,
quase inédito no mundo político:
aposentou-se da política apesar
de muito jovem (50 anos), de estar apenas no seu segundo mandato (o parlamentarismo permite
infinitas reeleições) e de as pesquisas indicarem que ganharia facilmente um terceiro mandato
nas eleições gerais já marcadas
para março.
"Lideranças excessivamente
prolongadas podem resultar, ao
final, perturbadoras. Às vezes, é
mais fácil chegar que sair, mas como há que sair, é preciso procurar
sair bem", disse à Folha, em entrevista no Palácio de la Moncloa,
a sede do governo, depois da reunião habitual do gabinete das sextas-feiras e antes de almoçar com
Colin Powell, o secretário norte-americano de Estado.
Veja trechos da entrevista:
Folha - O senhor estará quarta-feira em Brasília certamente para
dar andamento às "relações estratégicas" com o Brasil. O que isso
significa concretamente, se o próprio presidente Lula já definiu como "extraordinárias" as relações
Brasil-Espanha?
José María Aznar - As relações
Espanha-Brasil neste momento
são de fato de forte confiança política. A Espanha é o segundo
maior investidor do mundo no
Brasil e, portanto, as relações se
desenvolvem em um âmbito de
profunda inter-relacionamento
econômico. Nosso comércio é
crescente, e desejamos fortalecê-lo em todos os aspectos.
Dar conteúdo estratégico ao relacionamento significa o compromisso de trabalhar conjuntamente não só do ponto de vista bilateral, mas também do ponto de vista geral. Trabalhar conjuntamente nas Nações Unidas, nas relações da União Européia com o
Brasil e especialmente com o
Mercosul. Trabalhar conjuntamente no âmbito da comunidade
sul-americana e estreitar ainda
mais nossos contatos políticos e
nossa relação econômica e comercial.
Folha - Trabalhar conjuntamente
significa que a Espanha apoiaria a
candidatura do Brasil a um posto
permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas?
Aznar - Significa que temos que
falar disso, evidentemente, e que
nós consideramos que a aspiração do Brasil é absolutamente lógica. Estamos iniciando um processo de reforma da ONU. Falei
anteontem [quarta-feira] com o
secretário-geral Kofi Annan sobre
esse processo, que vai começar
em novembro e durar um tempo.
É preciso ser consciente da necessidade de reformar a organização. Não somente o Conselho de
Segurança, não somente a Assembléia Geral, mas também as agências que a ONU tem.
Em consequência, é preciso ver
como fica desenhada a organização com vistas ao futuro. Não vai
ser uma tarefa fácil e, portanto,
não é uma questão apenas de
apoios. É preciso ver se se aumentam os membros permanentes do
Conselho de Segurança, o que
acontece com o direito de veto,
como se refletem os pesos geográficos. São questões enormemente
delicadas. O que é preciso é abordá-las conjuntamente.
Folha - Trabalhar conjuntamente
significa que a Espanha defenderia
uma redução do protecionismo
agrícola europeu, como pedem o
Brasil e o Mercosul?
Aznar - Sou partidário declarado
do livre comércio. Creio que favorece especialmente os países menos desenvolvidos. Então, não
creio que tenha sido bom o que
aconteceu em Cancún, na reunião
da OMC [Organização Mundial
do Comércio]. Não foi bom especialmente para os países em vias
de desenvolvimento.
Por quê? Porque as possibilidades que havia para aumentar o livre comércio não foram aproveitadas. Não foi um bom resultado,
mas pode-se recuperar isso. As últimas reuniões entre União Européia e Mercosul estão avançando
em terreno positivo.
Em consequência, há obrigações para as duas partes. É preciso
estabelecer marcos muito claros
para investimentos, comércio,
para a segurança jurídica, para a
segurança institucional nos países. Há que cumprir regras de
bom governo e de transparência,
de confiança. E, ao mesmo tempo,
evidentemente, há que favorecer
tudo o que diz respeito ao livre comércio, não só em mercadorias,
mas também em serviços.
Folha - Os pontos que o sr. menciona foram, na essência, os que
causaram o confronto em Cancún e
levaram a reunião ao fracasso...
Aznar - Por isso é que é preciso
preparar bem e com antecipação
essas coisas. Por isso, a relação estratégica significa falar de confiança em todas essas questões
porque provavelmente, antes de
Cancún, não se falou o suficiente
de muitas delas.
Folha - Mas sobre o protecionismo agrícola europeu já se falou
bastante e, no entanto...
Aznar - Mas veja que a reforma
da Política Agrícola Comum [da
União Européia] abriu importantes possibilidades. Temos que
aproveitar essas possibilidades.
Haverá quem pense que não é suficiente. Mas sobre o que é possível -e nisso consiste a política-,
há que aproveitar.
Folha - As relações entre empresas e o governo espanhol e o Brasil
parecem viver momento bem diferente das relações entre a Argentina e a Espanha, empresas e governo, bem mais conflituosas. É isso
mesmo?
Aznar - As relações Brasil-Argentina são muito importantes, e
a Espanha é o principal investidor
tanto no Brasil como na Argentina. É evidente que a Argentina teve uma crise brutal da qual felizmente vai saindo.
A Espanha contribuiu de uma
maneira muito intensa para os
acordos entre a Argentina e o
Fundo Monetário Internacional.
A Espanha fez concessões muito
importantes para que a Argentina
pudesse sair da crise.
O que nós desejamos é um marco político e econômico de estabilidade na Argentina, para que as
empresas espanholas e outras
empresas possam tomar as decisões de investimento que lhes pareçam oportunas.
O mesmo, evidentemente, se
aplica ao Brasil. Sempre há dificuldades, mas há grande confiança espanhola no futuro do Brasil.
Marcos estáveis são importantes
para garantir segurança porque
todos os países necessitam gerar
confiança e necessitam investimentos externos. Os países que
conseguem mais desenvolvimento são os países que são capazes de
gerar essa maior confiança.
Folha - Lula o surpreendeu ao gerar marcos estáveis?
Aznar - Quando alguém chega à
Presidência, seja na Espanha, seja
no Brasil, seja em qualquer país,
tem que administrar a realidade.
Não administrará sonhos. Pode
criá-los. Não administrará utopias. Pode pensá-las.
Mas, sobretudo, tem que melhorar a realidade. Essa é a nossa
obrigação. Ao final do mandato, a
prova por que tem que passar um
homem de governo é a seguinte:
encontrei um país em tais e tais
condições. Deixo um país nestas e
nestas condições. Se são melhores, a obrigação foi cumprida.
Vejo que a orientação do presidente Lula é essa, do ponto de vista da geração de confiança no Brasil e das reformas que o país possa
necessitar.
Folha - O sr. manteve boas relações com o presidente Fernando
Henrique Cardoso...
Aznar - Ainda mantenho.
Folha - O presidente Fernando
Henrique era mais muito próximo
do Partido Socialista Operário Espanhol, seu adversário. Agora, o sr.
mantém também boas relações
com o presidente Lula que, no entanto, era um crítico duro do presidente Fernando Henrique. Sei que
o sr. dirá que relações de Estado
são diferentes de relações pessoais, mas não há nesses fatos uma
aproximação ao centro dos diferentes governantes?
Aznar - Todos os componentes
dos preconceitos ideológicos,
desde que caiu o Muro de Berlim,
se diluíram. Não significa, como
alguns pensam, o pensamento
único. Quer dizer que os matizes,
as diferentes orientações que possa haver, podem encontrar pontos de confluência. Há pontos de
confluência muito importantes
neste momento que são dificilmente contestáveis: eficácia da
economia de mercado, da estabilidade econômica como motor do
crescimento, estabilidade econômica como fator de confiança internacional, manter contas públicas saneadas.
Folha - Uma evidente divergência
entre o sr. e o presidente Lula é a
respeito do multilateralismo e do
suposto ou real unilateralismo norte-americano. A Espanha foi um
dos poucos países que apoiou firmemente a intervenção no Iraque.
Depois de tanto se falar de armas
de destruição em massa, que não
foram encontradas, o sr. não se arrepende um pouco?
Aznar - A Espanha fez o que tinha que fazer. E o fez por convicção, porque somos partidários da
legalidade internacional e de que
ela seja respeitada. Quando o
Conselho de Segurança das Nações Unidas diz a um país que tem
a última oportunidade de demonstrar que não possui armas
de destruição em massa e esse
país não o faz, devem ser tomadas
as decisões que correspondam.
Isso não significa que as decisões sejam cômodas. Sempre digo
que, primeiro, mantenho uma
posição de respeito à legalidade
internacional. Segundo, que todos estamos de acordo sobre
quais são as três ameaças diretas à
segurança do mundo: o terrorismo -a principal-, a proliferação de armas e Estados que não
cumprem a lei.
Terceiro, do ponto de vista da
segurança e da estabilidade no
mundo, os Estados Unidos, com
todos os seus problemas, são a
única alternativa neste momento.
Essa é a realidade.
Sou firme partidário da relação
atlântica [entre Europa e Estados
Unidos]. Mas sou também firme
partidário de estender essa relação atlântica a toda a América,
porque o mundo seria, com isso,
mais estável e mais seguro.
Folha - Que tipo de apoio vai dar a
Espanha ao programa Fome Zero
do presidente Lula?
Aznar - São coisas que podemos
concretizar durante minha viagem ao Brasil. É um programa
muito ambicioso, muito interessante, e espero e desejo que possamos concretizar o que estiver ao
nosso alcance.
Levo propostas que, neste momento, estamos discutindo com o
governo do Brasil. Como não depende só de mim, mas também
do governo brasileiro, vamos ver
como se materializa.
Folha - Com a desaceleração econômica em todo o mundo, as empresas espanholas estão mais temerosas de investir na América Latina, ainda uma zona de risco?
Aznar - Não. Continuamos investindo. Dou-lhe um dado: de
1990 a 1995, a Espanha investiu na
América Latina creio que US$ 5
bilhões. De 1996 a 2001, a Espanha
investiu US$ 105 bilhões. O investimento acumulado da Espanha
no Brasil supera neste momento
os US$ 25 bilhões. É o segundo investidor, após os Estados Unidos.
O que acontece é que o investimento espanhol também se espalha por outros países. Já somos o
quinto ou sexto maior investidor
do mundo. Essa é a realidade, e
nós continuamos confiando. O
que me preocupa é que não ocorra na América Latina nenhum retrocesso democrático.
Folha - O sr. acha que o que ocorreu na Bolívia caracteriza algum tipo de retrocesso democrático?
Aznar - Acredito sinceramente
que, em todas as mudanças que se
façam, devem ser respeitados os
procedimentos e as regras. O que
me preocupa agora é que a democracia boliviana não seja de modo
algum danificada.
Folha - Por que retirar-se da política tão jovem, com popularidade
alta e com grandes possibilidades
de obter uma terceira vitória consecutiva?
Aznar - É uma questão de convicção pessoal. Creio que os mandatos devem ter limites razoáveis
e, se não existem legalmente, eu
me decido por ele pessoalmente.
Creio que a força dos países é
dada pela força das instituições e
das organizações representativas.
Lideranças excessivamente prolongadas podem resultar, ao final,
perturbadoras. Creio que é o melhor que posso fazer por meu país
e por meu partido. E o faço. Às vezes, é mais fácil chegar que sair,
mas como há que sair, é preciso
procurar sair bem.
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