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BRASIL PROFUNDO
Para autor de livro sobre tema, débito é visto por vítima como motivo justo para ser privada da liberdade
Dívida legitima trabalho escravo, diz padre
GUILHERME BAHIA
DA REDAÇÃO
A dívida é uma forma de legitimar para o empregado e para o
fazendeiro a exploração do regime de trabalho análogo à escravidão, diz o padre Ricardo Rezende
Figueira, que concluiu no ano
passado seu doutorado sobre o tema na Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.
Essa coerção moral, como ele
define, se alia ao uso da violência
para sustentar a exploração do
trabalhador. Neste ano, o padre
transformou a tese de doutorado
no livro "Pisando fora da própria
sombra - A escravidão por dívida
no Brasil contemporâneo", onde
apresenta também as ligações entre escravidão e migração.
A seguir, trechos da entrevista.
Folha - Por que o sr. diz que o trabalho escravo nunca é baseado
apenas na coerção física?
Ricardo Rezende Figueira - No
caso da escravidão brasileira
atual, sempre se exerce alguma
coerção para reter o escravo no
trabalho, sem ser necessariamente uma coerção física. Há outros
mecanismos mais sutis, como o
moral: a vítima está devendo e
quem deve tem que trabalhar até
saldar o débito. Além disso, um
mecanismo eficiente de manter a
pessoa presa ao trabalho é reter
seus documentos, não lhe pagar e
mantê-la longe da sua própria casa, da rede de amigos e parentes.
A distância dificulta a solidariedade. Contudo, em determinadas situações na Amazônia, o empreiteiro trata o trabalhador com uma
violência tão grande que parece
não lhe interessar o que este pensa. Aí, a coerção é também física.
Folha - A dívida é suficiente para
que o escravizado aceite a sua situação como legítima?
Figueira - O pretexto da dívida
muitas vezes é suficiente. Porém,
não deixa de haver crime porque
a vítima não tem consciência dele.
Folha - Há casos em que os trabalhadores defendem seus recrutadores, que teoricamente são seus
opressores, da fiscalização, não é?
Figueira - É verdade. Algumas
vezes perguntei a trabalhadores
como havia sido o período passado na fazenda. Respondiam que
tinha sido bom, sem problemas.
Perguntava então: havia o sistema
de dívida? Sim, havia. Se estivesse
devendo, podia sair? Não, não podia sair de forma alguma. O mesmo se passou entre um jornalista
francês do "Le Monde Diplomatique" [periódico francês] e um dos
maiores fazendeiros do sul do Pará, o falecido Jairo Andrade. Ele
negou utilizar mão-de-obra escravizada, mas, quando o jornalista lhe perguntou se alguém estiver devendo, ele pode sair da sua
fazenda, ele respondeu que não.
Folha - Na fazenda, se o chefe toma uma decisão vista como ilegítima, sua autoridade é contestada?
Figueira - É contestada segundo
as possibilidades. O trabalhador
pode, por exemplo, trabalhar menos, trabalhar mal, ou até fugir.
Em alguns casos, até matar o gato
ou o fazendeiro. O grande drama
é o pretexto da dívida, que funciona mesmo. A pessoa não quer ser
chamada de ladrão. Quem deve,
tem que pagar. A coerção moral
pode ter um efeito mais devastador. É como na escravidão legal.
Não havia gente armada para tomar conta dos escravos. Aqui no
Rio de Janeiro, por exemplo, era
muito comum as famílias, mesmo
as famílias pobres, terem escravos
de aluguel. O escravo saía para a
rua, ia trabalhar e trazia o dinheiro para o patrão. Mas o patrão
não tinha controle absoluto. Não
tinha um homem armado atrás
do escravo. Ele tinha uma liberdade de ir e vir, mas não deixava de
ser escravo. E por que não deixava? Porque, de certa forma, achava que o patrão estava fazendo o
que a lei permitia. O escravo ia se
rebelar se o patrão ultrapassasse
algo que ele achava inadmissível.
Folha - Quais são as condições para que haja trabalho escravo?
Figueira - Você pega o exemplo
concreto do sul do Pará, em que
se implantam muitas empresas e
empreendimentos agropecuários
e há uma escassez de mão-de-obra. Ao mesmo tempo, há uma
superabundância de mão-de-obra disponível, por exemplo, no
Vale do Jequitinhonha, em Minas
Gerais, no Piauí, no Maranhão, no
Ceará, onde há uma população
que não consegue trabalho. A
conjugação desses dois fatores
propicia a utilização de mão-de-obra escrava. E tem que haver no
meio disso aquele que vai ser o
traficante de gente. Isso em todas
as escravidões. Você pega no passado o exemplo do Brasil. Havia
uma escassez de mão-de-obra no
país e, ao mesmo tempo, havia a
possibilidade de seqüestro e de
compra de pessoas na África. Esses dois fatores propiciavam a
existência da escravidão. Sem
eles, ela não era possível.
Folha - O trabalho escravo está ligado a migrações.
Figueira - Sim, porque o escravo
é sempre de fora, nunca é de casa,
por uma razão que é a fragilidade.
Se você está longe da sua casa, da
sua rede de parentesco e amizade,
você tem menos chance de ser
protegido. A dívida, por exemplo,
é mais complicada de ser utilizada
com gente da região. Por duas razões: uma, que as pessoas não vão
pedir dinheiro emprestado porque têm outras alternativas. A segunda é que, se houver dívida, os
parentes, os vizinhos poderão retirar a pessoa do trabalho escravo,
e esse pretexto iria desaparecer.
Folha - Aqui em São Paulo há denúncias de trabalho escravo, mesmo com um alto índice de desemprego. Isso não contraria sua tese?
Figueira - São Paulo tem uma sociedade civil mais organizada, que
cobra mais. E a presença do Estado também é mais forte. Isso dificulta a contratação de pessoas
com salários muito baixos. Os
sindicatos reagiriam, o Ministério
Público reagiria. Para usar a mão-de-obra aí, há a possibilidade com
estrangeiros. Essas pessoas vão se
submeter porque são prisioneiras
do sistema de endividamento e
também da ameaça: "Se você fugir ou reclamar, a gente comunica
e você vai ser expulso do país".
Folha - É comum associar trabalho escravo a formas de produção
atrasadas. Mas, no seu livro, o sr.
afirma que ele existe em fazendas
onde se pratica agricultura empresarial com técnicas avançadas.
Figueira - Trabalho escravo não
é incompatível com a existência
do capitalismo mais moderno.
Empresas com alta tecnologia, se
houver condições favoráveis, são
capazes de usarem formas de trabalho do Brasil pré-republicano.
Folha - O trabalho escravo afeta
quantas pessoas no Brasil?
Figueira - Ninguém sabe. O que
tem sido dito pela Comissão Pastoral da Terra, e às vezes pela OIT,
é que na área rural existem em
torno de 25 mil pessoas. Mas podem ser muito mais. São estimativas difíceis. E não incluídas aí as
pessoas da região urbana.
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