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ENTREVISTA
Ex-presidente da SBPC, Sérgio Ferreira, que apoiou Lula, critica programa de alfabetização e política econômica
Cientista vê "marketing vagabundo" do PT
JOSÉ ALBERTO BOMBIG
ENVIADO ESPECIAL A ÁGUAS DE LINDÓIA
Um dos principais nomes do
grupo de cientistas que em outubro do ano passado formalizou
apoio à candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o médico e farmacólogo Sérgio Ferreira, 68, diz que falta "transparência" ao Ministério da Ciência e
Tecnologia, critica a atual política
econômica e chama o plano de alfabetização do governo federal de
"marketing vagabundo".
Ex-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência), Ferreira defende a
substituição de Cristovam Buarque (Educação) e diz que, caso
Roberto Amaral (Ciência e Tecnologia) não "aceite a responsabilidade da transparência", também
deve ser trocado.
Em 1965, o cientista descobriu
no veneno de uma cobra jararaca
substâncias que permitiram grandes avanços no combate à hipertensão. Os resultados da pesquisa
deram a ele notoriedade no Brasil
e no exterior e o transformaram
em uma das maiores autoridades
da farmacologia mundial.
Ferreira, em sua gestão na SBPC
(1995-1999), enfatizou a divulgação científica, especialmente entre as crianças, contra o que chama de "analfabetismo científico".
Para ele, o programa Brasil Alfabetizado, lançado pelo governo
federal neste mês, não estimula a
curiosidade e é um retrocesso.
"Esse projeto ensina a ler e pronto. Saber ler é saber interpretar."
Em Ribeirão Preto, onde leciona na USP, o cientista criou, com
um grupo de intelectuais e personalidades de diferentes área, o
Templo da Cidadania, espaço voltado para a divulgação e discussões de questões sociais que tem
entre seus "sócios" o ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda), ex-prefeito da cidade paulista.
Apesar da proximidade com o
ministro, Ferreira afirma que o
modelo econômico atual tem aumentado as desigualdades sociais.
"A gente está pagando, está economizando, e a pobreza está aumentando. A resolução do FMI
não serve para nós. A gente tem
que sair desse esquema que parece inexorável."
Leia a seguir a entrevista, concedida à Folha, na última terça-feira, durante um encontro nacional
de farmacologia em Águas de Lindóia (SP).
Folha - A ciência e a pesquisa no
Brasil passam por um momento de
grave crise?
Sérgio Ferreira - Nós temos que
entender que crise em ciência, no
momento atual ou na última década, sempre representou falta de
dinheiro. Mas o maior problema é
saber se existe uma política científica para o Brasil e se existe, em
paralelo, uma política de desenvolvimento tecnológico. Nós estamos fazendo de 6.000 a 10 mil
doutores por ano. A grande pergunta é: onde é que eles vão parar?
Por que nós estamos fazendo
ciência no Brasil?
Uma primeira parte é para educar a pensar cientificamente, educar a universidade a pensar. Essa
primeira etapa começou realmente após a Segunda Guerra
Mundial. Não foi a universidade
que começou a fazer ciência no
Brasil, inclusive ela sempre foi
meio contra a ciência no país. Um
exemplo típico foi no golpe de
1964, em que aproveitaram para
mandar para o inferno quem estava fazendo boa ciência no Brasil. Ocorre, porém, que a visão do
desenvolvimento tecnológico no
país nunca avançou, e a culpada
não é a universidade, são as indústrias, que nunca tiveram a característica de produzir seu próprio desenvolvimento.
Folha - Até que ponto o contingenciamento de verbas é prejudicial aos cientistas e ao país?
Ferreira - Os economistas brasileiros são contra a ciência, acham
que ela não vai servir para nada.
Da mesma forma que acham que
a nossa economia tem que servir
apenas para pagar as dívidas do
país. A visão nunca é voltada para
resolver a curva de pobreza do
Brasil. A gente está pagando, está
economizando, e a pobreza está
aumentando. A resolução do
Fundo Monetário Internacional
não serve para nós. A gente tem
que sair desse esquema que parece inexorável.
Folha - O sr. esperava mais do
atual governo?
Ferreira - O PT recebeu um país
como o recebeu o governo anterior, em uma democracia de corporações. Ele está muito mais interessado na manutenção do poder político do que na ideologia. E
para poder manter o poder ele
tem que definir governabilidade,
o que significa assumir plataformas semelhantes às dos outros
governos. Se a gente esperava
uma mudança rápida, isso não
pôde ocorrer pela própria dinâmica da democracia corporativa.
Essa mudança vai ocorrer no futuro? É a grande questão. Qual era
o compromisso social do PT? No
fundo, é quase um retorno ao nacionalismo, que há dois anos era
um palavra feia. Mas sou corintiano, aprendo com as derrotas e
acredito até o fim.
Folha - Que nacionalismo é esse?
Ferreira - Um nacionalismo que
vai ter que reestruturar a visão da
indústria. Você imagina um país
abundante em açúcar e em produtos cítricos, mas onde o ácido
cítrico é importado e a glicose para a medicina também. Todos nós
sabemos que medicamento é segurança nacional. Nós vamos ter
de nos opor. Impossível ter um
país em que visão de industrialização é montagem de automóvel,
é zona franca onde se monta radinho. Isso não é indústria, é safadeza pura onde existe manipulação
de capitais. Alguém está fazendo
algum motor novo? O que é que
os cientistas estão pedindo? Primeiro, um traçado de uma política econômica que incorpore a
produção da inovação. Para isso,
serão necessárias medidas que
vão afetar o comércio internacional. Para isso, é preciso fazer coisas para o próprio país.
Folha - O sr. acha que o governo
está seguindo esse caminho?
Ferreira - Eu acho que falar em
Fome Zero é uma bobagem. Nós
devíamos empatar o nosso dinheiro para resolver o problema
da sede, que traria trabalho e produção. Agora, tem que ser água
para o povo trabalhar, e não para
as aristocracias rurais, como foram os grandes projetos da Sudene. A Sudene voltou, mas a que tipo de solução ela está voltada?
Folha - O que querem os cientistas?
Ferreira - Se nós pegarmos a verba do Ministério da Ciência e Tecnologia, de mais ou menos R$ 600
milhões, nós vamos ver que o governo passado deixou uma dívida
de R$ 400 milhões. A quantidade
de dinheiro para redistribuição é
extremamente pequena, o que
pode causar desvios, como puxar
projetos que eram fundamentalmente do governo federal para associações como as FAPs [Fundações de Amparo à Pesquisa] estaduais. Por exemplo, você pega o
Pronex [Programa de Apoio a
Núcleos de Excelência], que era
um plano no qual você tinha alguns laboratórios associados e
um investimento na associação
de centros de grande atividade
com centros emergentes. Ao passar o Pronex para as FAPs, imediatamente não é mais Pronex.
Nós, em São Paulo, não podemos
mais comprar materiais para enviar para outros Estados. Na verdade, a Fapesp, por exemplo, deu
um passa-moloque. Pegou o dinheiro do governo, mas vai colocar um dinheiro que não será um
Pronex verdadeiro.
Folha - O sr. é um dos mais duros
críticos do projeto Genoma, da Fapesp...
Ferreira - Esses projetos induzidos pelas financeiras nós não conhecemos bem como andam. Somos profundamente contrários a
esses processos de indução grandes e intermináveis, que não têm
um ponto definido de término,
que envolvem uma grande compra e distribuição de material. O
projeto do Genoma é um projeto
de desenvolvimento tecnológico
que poder ser feito de várias maneiras. Até que tecnicamente deu
certo. Mas eu pergunto: US$ 5 milhões para publicar um "paper"
na "Nature" sobre o amarelinho?
O que é isso? Agora vai existir o
projeto do proteoma.
Vão comprar um monte de máquinas que vão ter que ser mantidas com projetos que não têm significado nenhum. Se nós queremos fazer desenvolvimento de
medicamentos, implicaria primeiro em encontrar um alvo, o
que queremos resolver. É isso que
nós estamos desaprendendo.
Folha - O sr. acha que o CNPq e o
governo estão corretos em estimular a participação das FAPs?
Ferreira - Nós sempre fomos a
favor de que o CNPq [Conselho
Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico] criasse
projetos para estimular as FAPs.
O que nós tínhamos que fazer era
a recriação das FAPs em vários lugares, como no Rio Grande de Sul
e no Maranhão, onde elas sumiram. Nós não somos contrários a
essa aparente pulverização do dinheiro, desde que fossem recriadas as FAPs. Agora, se não forem,
e se esse dinheiro for para o governo ou para qualquer instituição que não tenha um feedback
da comunidade científica, ele vai
desaparecer e não servir para nada. Além disso, pura e simplesmente mandar o dinheiro para regiões em que não há pesquisas
achando que ele por si só fará pesquisa é besteira.
Pesquisa se faz com dinheiro e
com gente que tem cultura. É preciso um ambiente para isso. Os
reitores querem o dinheiro, mas
duvido que em muitas universidades do Brasil exista ambiente
para fazer cultura. O CNPq tem
consciência disso.
Folha - O que seria necessário, em
termos de modelo educacional, para criar esse ambiente?
Ferreira - É preciso mudar profundamente os sistemas universitário, secundário e primário de
educação. A única forma de ensinar é ensinar a aprender. Não
adianta dar pronto o conhecimento porque ele vai emburrecer
o estudante. O problema para reeducar cientificamente um país é
não permitir que a curiosidade de
suas crianças e de seus jovens seja
destruída. As coisas que temos
hoje de educação dão quantidade
e acabam com a curiosidade. Nós
pegamos os indivíduos nas universidades e os transformamos
em autônomos, vendedores de
medicamentos e utilizadores de
aparelhos que usam sem ter nem
a curiosidade de como foram feitos, simplesmente querem ganhar
seu dinheirinho.
Folha - O sr. trabalha em Ribeirão
Preto, cidade do ministro da Fazenda...
Ferreira - Ele faz parte do Templo da Cidadania que fundamos
lá. No Ministério da Fazenda nós
temos vários que são do Templo,
mas agora que eles entraram lá
não têm aparecido. Nem para tomar cerveja. A economia é a única
ciência cujos fatos não têm importância nenhuma. Portanto, eu
posso ter a minha opinião: acredito que se pudesse haver outro modelo em que pudéssemos diminuir o volume de recursos destinado ao pagamento das dívidas,
seria interessante.
Os EUA pagaram dívidas com o
Brasil, no pós-guerra, em espécie.
Eu penso que, se devemos e já pagamos nossas dívidas várias vezes, deveríamos criar um empório
dos nossos artigos e quem quisesse receber viesse aqui buscar. Assim poderíamos vender o nosso
aço para os EUA e eles não poderiam reclamar.
Folha - O sr. acha que na reforma
ministerial que deverá ocorrer até
o final do ano o ministro da Ciência
e Tecnologia, Roberto Amaral, deveria ser trocado?
Ferreira -Eu acho que até agora
uma das grandes mudanças deveria ser no Ministério da Educação,
onde o ministro não sabe entender nem a política que ele propõe
para o país, que afeta profundamente o desenvolvimento científico. Ele não entende nem o que
são revistas internacionais, o que
é Capes, mistura coisas na cabeça.
Fez uma proposta de alfabetização que é um verdadeiro absurdo.
Alfabetização não é ensinar a ler, é
processo altamente complicado.
Esse projeto ensina a ler e pronto.
Saber ler é saber interpretar.
Essa idéia de que é só ensinar a
ler não passa de um marketing vagabundo de um ministério.
Quanto ao Ministério de Ciência e
Tecnologia, estou pagando para
ver. O grupo de pesquisadores
que está lá é muito bom, herdaram muitas dificuldades do ponto
de vista econômico. A administração dos fundos oriundos da
privatização poderá ser o grande
motor do desenvolvimento científico e tecnológico. O mais importante é que o ministro aceite a
responsabilidade da transparência e de fazer previsões. A equipe
dele pertence à Academia Brasileira de Ciências.
Eu não sei quanto uma eventual
mudança poderia alterar. Mas
acho que a visão pode ser alterada. A sociedade quer participar e
ver o que está acontecendo. Isso
vale também para as FAPs e para
o ministério. Agora, no caso do
ministério, é necessário que eles
digam qual é a política de desenvolvimento tecnológico do país.
Sem isso, mudem o ministro.
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