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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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MESMA LÍNGUA

Futebol inspira a imaginação da equipe econômica, que tem desde goleiro a cobrador de pênaltis; outros assessores preferem a medicina

Metáforas do presidente contaminam fala dos ministros

VIRGILIO ABRANCHES
DA REDAÇÃO

"O Brasil está na reta final para deixar a segundona, chegando à primeira divisão dos investimentos." Não, apesar do estilo metafórico, a frase não é do presidente Lula em mais uma tentativa para explicar as medidas de seu governo recorrendo ao futebol. O autor é o secretário do Tesouro, Joaquim Levy, um dos nomes fortes do ministério da Fazenda.
Assim como Levy, outros nomes do alto escalão do governo gostaram da idéia e, pouco a pouco, transformaram as discussões de políticas públicas em jogos de palavras. Como no caso de Lula, o futebol é a principal fonte de inspiração. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, encarou os países que mantêm o protecionismo aos produtos agrícolas como adversários no gramado. Em julho, garantiu: "Eles vão levar bola nas costas".
No mesmo time de Rodrigues joga o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, que, além de participar das formulações da mesa-redonda federal, ainda "escalou" um outro colega: "O ministro da Fazenda, num time de futebol de 11, é o goleiro. Tem de cuidar para não tomar gol dos adversários e, de vez em quando, não tomar gol contra", disse em novembro, sobre as "defesas" de Antonio Palocci Filho na área econômica.
Se no time de Lula tem goleiro que "pega todas", tem também jogador que pede para não sair, ergue os braços e reclama: "O presidente é o técnico do time. Enquanto eu estiver escalado, continuo jogando". Foi o que disse o ministro José Graziano (Segurança Alimentar), neste mês, sobre a reforma ministerial.
O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, também entrou na onda para driblar a marcação da opinião pública sobre a política monetária: "Muitas vezes estamos perto do fim de um jogo de futebol, há um pênalti para ser batido, e o jogo está empatado. Evidentemente isso configura uma possibilidade grande de vitória, mas o pênalti tem de ser batido corretamente, eficazmente e com categoria porque a vitória comemorada antes de sua batida pode levar, inclusive, o chute para fora", declarou.
"É o efeito "Lula-Mendonça'", diz o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, da Unicamp: "É uma preocupação em falar linguagem popular para manter uma falsa interlocução com as massas".
Mas os que não gostam de entrar em campo também têm vez no governo. Benedita da Silva (Assistência Social) mostrou, neste mês, que sabe associar o trabalho do governo às tarefas do dia-a-dia. Ao defender que a equipe de Lula está construindo o socialismo no Brasil, ela declarou: "O sal fora da massa não tem efeito, é como fermento fora da massa". Os afazeres domésticos também inspiram o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos: "Reprimir sem prevenir equivale a secar o chão com a torneira aberta", disse em setembro.
"É uma contaminação", analisa Garcia dos Santos. "Eles acham que isso está dando certo com o Lula porque ele, apesar de fazer uma política antipopular, mantém uma taxa de popularidade muito alta", opina.
Se na visão dos colegas Palocci é um goleiro, o próprio faz questão de não se distanciar de sua profissão de origem. Em outubro, para conter os ânimos entre o secretário e o corregedor da Receita, ameaçou: "Vocês sabem que sou cirurgião e sei cortar".
O ministro Gilberto Gil (Cultura), num discurso, invadiu a área da colega Marina Silva (Meio Ambiente): "Tenho insistido na idéia de que este governo deve praticar diariamente a fotossíntese política, trabalhando sempre à luz do dia, sem filtros ou anteparos de qualquer natureza". Outro que buscou inspiração na área alheia foi Cristovam Buarque (Educação), ao explicar o novo sistema de avaliação dos cursos superiores. "Tem doente que acha que basta tirar a temperatura para ter o diagnóstico. Antigamente, o provão tirava apenas a temperatura do doente. Agora, vamos apresentar o diagnóstico completo e dar a receita".
Para Alessandra Aldé, professora da Universidade do Estado do Rio, usar figuras de linguagem é uma saída para quem não quer ser cobrado pelo que diz. "Quando se usa uma metáfora, tem-se um grau menor de comprometimento. Não dá para as pessoas cobrarem objetivamente um discurso metafórico."


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