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UM ANO DE LULA
Fundador do PT, César Benjamin diz que conversão do partido agride a democracia e que governo ergue castelo de cartas
Ex-petista vê Lula como "um FHC sem o real"
FLÁVIA MARREIRO
DA REDAÇÃO
"O governo Lula anuncia orgulhosamente sua própria mediocridade" ao apostar em crescimento de 4% do PIB no ano que
vem. "Lula tem sido um Fernando Henrique sem real, ou seja, nada" e "se comporta como uma espécie de Moisés de opereta, até
porque, na travessia que propõe,
nada sai do lugar".
A análise é do ex-petista César
Benjamin, 49, e não chega a surpreender. Ele enxerga na esquerda uma crise sem precedentes e o
estilo duro já obrigou o intelectual
a se desculpar com militantes petistas pelas críticas feitas em "O
triunfo da razão cínica", artigo
publicado na revista "Caros Amigos" em que ele apontava a morte
do Partido dos Trabalhadores.
Benjamin -fundador do partido e dirigente até 1995-, porém,
mantém a previsão apocalíptica
para o PT, que, segundo ele, está
imerso "na cultura do pragmatismo, do oportunismo e do individualismo".
"Primeiro vamos ler os sinais,
como fazem os profetas", diz ele,
antes de fazer uma análise do processo que culminou na expulsão
dos parlamentares chamados radicais, a quem ele defende.
Sobre a formação de um partido
de esquerda para se opor ao governo Lula, desconversa: "A oposição virá do povo brasileiro".
Benjamin, editor da Contraponto, hoje coordena o Movimento Consulta Popular (fórum
que reúne movimentos sociais) e
crê que o setor terá uma posição
ativa no jogo político em 2004:
"Os movimentos sociais só terão
capacidade de ação minimamente eficaz depois que o descontentamento difuso se espalhar, criando uma legitimidade social de
fundo para que eles recuperem a
autoconfiança e percebam a necessidade de agir".
A seguir, trechos da entrevista.
Folha - Como um dos fundadores
do PT e um dos primeiros a apontar
no partido mudanças de rumo, ainda em 1995, como o sr. avalia a saída dos chamados radicais? Haverá
efeito de longo prazo? Haverá mudanças internas?
César Benjamin - Primeiro vamos ler os sinais, como fazem os
profetas. Delúbio Soares foi escolhido pela corrente majoritária do
PT para defender no Diretório
Nacional a expulsão da senadora
Heloísa Helena. Na sua condição
de eterno tesoureiro, Delúbio tem
uma trajetória opaca. Exige-se dele apenas que seja capaz de levantar financiamentos, movimente-se de forma discreta e demonstre
absoluta fidelidade aos chefes.
Heloísa Helena é o contrário disso: extrovertida,
sincera, independente, movida por
ideais. É a cara da
militância. Um
sempre viveu na
sombra, a outra
sempre viveu na
luz. Delúbio
apontou seu dedo
acusatório contra
Heloísa em uma
reunião que custou R$ 150 mil,
realizada em um
hotel de luxo, cujo
proprietário foi o
principal sócio e
avalista de Fernando Collor. Do
ponto de vista
simbólico, o que
mais precisa ser
dito?
No terreno prático, tudo me parece patético. Pois,
se prestarmos
atenção ao que os
chamados radicais do PT dizem,
veremos que, em
economia, eles pedem apenas que o
capitalismo funcione: que a taxa de juros seja inferior aos ganhos na produção,
que se criem condições para que
os empresários contratem mais
trabalhadores, que o Estado invista em infra-estrutura e serviços
públicos e assim por diante. No
máximo, desejam algumas reformas que os países desenvolvidos
fizeram há muito tempo. Em política, eles também pedem pouco:
que a democracia representativa
seja respeitada. Pois um regime
representativo pressupõe uma relação de lealdade entre representante e representado. O PT agride
e enfraquece a democracia brasileira, com consequências imprevisíveis a médio prazo quando
chega ao poder e muda subitamente todas as suas posições.
Creio que deveríamos tentar entender por que pessoas que defendem coisas tão simples, atuam pacificamente e buscam manter a
própria integridade são chamadas de radicais no Brasil.
Folha - Com a saída dos radicais,
o movimento que se anuncia para
formar um novo partido de esquerda [ou fortalecer o PSTU, dissidência dos intelectuais ligados ao PT e
de outros petistas históricos], o sr.
crê que o governo
Lula terá uma oposição de esquerda?
Benjamin - Terá
oposição do povo
brasileiro, pois
não tem nada a
oferecer a ele. Repetirá um ciclo
que conhecemos
bem, pela trajetória dos grupos que
ocuparam antes a
Presidência: instalam-se, deslumbram-se, pensam
que vão ficar 20
anos e são defenestrados. Com
seus cargos e verbas, com ampla
margem de manobra para a prática do fisiologismo, o Executivo
brasileiro é bastante forte quando se trata de premiar os amigos e
punir os adversários. Anula com
facilidade o Legislativo, compra a
adesão dos meios
de comunicação
de massa, manipula cientificamente a enorme necessidade coletiva de manter acesa a esperança
e assim por diante. Isso confere
aos inquilinos recém-chegados ao
Planalto a ilusão de que manejam
um poder incontrastável. Mas tudo é um castelo de cartas, pois vivemos em uma sociedade de massas imersa em profunda crise, e
esse mesmo Estado é fraquíssimo
como instrumento de transformação. Assim, a crise se repõe.
Como a sociedade precisa ser ouvida de tempos em tempos, aquele superpoder se esvai. Fernando
Henrique [Cardoso, presidente
de 1995 a 2002] demorou mais
porque teve o enorme impulso do
Plano Real. Lula tem sido um Fernando Henrique sem real, ou seja,
nada.
Folha - No livro "As transformações do PT e os rumos da esquerda
no Brasil", o sr. diz que a liderança
de Lula "poderá ser trágica" para o
país. Por quê?
Benjamin - Ao chegar ao governo e aderir ao receituário conservador, o PT criou uma situação
em que o povo e a nação se tornaram muito mais vulneráveis. Por
um lado, desarticulou-se, pelo
menos por um tempo, a capacidade de resistência da sociedade
brasileira à agenda conservadora,
pois essa capacidade estava grandemente depositada no próprio
PT e nos movimentos que ele influencia. Por outro, como todo recém-convertido, o PT tem de assumir o novo credo com mais radicalidade do que os crentes tradicionais, cuja fé está acima de
qualquer desconfiança. As sucessivas demonstrações de vassalagem do PT ao establishment, em
busca de conquistar e manter a
"credibilidade", custarão muito
caro ao Brasil. Parece que o próximo passo será a concessão de autonomia legal ao Banco Central,
operação que Celso Furtado classificou, com muita procedência,
de "privatização do Banco Central". Teremos entrado, definitivamente, no terreno da alta traição aos interesses nacionais.
Eu disse que a liderança de Lula
poderá ser trágica também porque a crise do seu governo -ela
me parece inevitável, mais cedo
ou mais tarde- colocará o Brasil
diante de uma situação perigosa.
Taxas de mais de 20% de desemprego em grandes cidades sempre
conduziram a crises sociais e políticas graves, com resultados incertos, muitas vezes dramáticos.
Quando a esperança em Lula desmanchar-se, que restará ao povo
brasileiro? De onde surgirá o
aventureiro salvacionista? Ou será
que estarão criadas as condições
para congelar de vez o sistema de
poder, com a adoção de um regime parlamentarista com Banco
Central independente? Assim, o
povo não elegeria mais o chefe do
governo, e o governo, por sua vez,
não poderia mais fazer política
econômica. A blindagem estaria
completa. Parece-me provável
que o PT venha a ser cúmplice
dessa operação. Como a crise social não seria resolvida, veríamos
então surgir no Brasil os verdadeiros radicais.
Folha - O governo aposta na retomada do crescimento em 2004 para
desviar da rota de crise de que o sr.
fala, não?
Benjamin - O problema é justamente que estamos diante de
mais uma aposta. É tão inconsistente quanto todas as que a antecederam. Há muitos anos, no Brasil, o crescimento ocorrerá no ano
seguinte. Às vezes, algum crescimento ocorre, nem que seja por
efeito estatístico ou inércia, no
contexto do que os economistas
chamam de "stop and go". Crescemos 4% no ano 2000. E daí? Algum problema foi equacionado?
Ao limitar sua utopia a prometer
um soluço de crescimento do
nosso capitalismo dependente, o
governo Lula anuncia orgulhosamente sua própria mediocridade.
Que alternativa que pode haver a
esse modelo que o sr. critica?
Benjamin - O governo atual, como os anteriores, é escravo de
uma macroeconomia do curto
prazo que se nutre do próprio fracasso. Pois essa macroeconomia
se justifica pela necessidade de gerir uma crise que ela mesma ajuda
a eternizar. Cria-se assim um moto perpétuo que não permite saída a partir de si mesmo. Ao contrário: o fracasso conduz os ideólogos à idéia de que é preciso fazer
mais do mesmo, dobrar a aposta,
pois sempre faltou fazer alguma
coisa. Na comunicação com as
massas, essa ideologia reveste-se
com o mito da travessia: precisamos purgar os pecados no presente para alcançar a terra prometida. Lula se comporta como uma
espécie de Moisés de opereta, até
porque, na travessia que propõe,
nada sai do lugar.
Essa lógica precisaria ser rompida de fora para dentro, por uma
ação de natureza política que recolocasse a discussão sobre os fins
da própria economia e sobre os
fundamentos da nossa vida em
sociedade. Só assim o problema
da transformação qualitativa da
sociedade -que é o problema de
todos os socialistas, mesmo os
mais moderados- poderia ser
colocado. Num contexto de estímulo à participação, apareceriam
inúmeras alternativas. Mas a credibilidade junto ao capital financeiro exige também um comportamento político desmobilizador.
A adesão do PT ao discurso da
falta de alternativas é constrangedora, pois torna inútil todo o esforço que fizemos para eleger o
próprio Lula, e não outro qualquer. Por que ele se candidatou,
então? O fatalismo, que sempre
foi considerado um sinal de ignorância, converteu-se subitamente
em um sinal de sapiência. Pior:
adotando esse discurso, os novos
dirigentes da nação fogem de sua
responsabilidade. Os advogados
sabem muito bem que uma decisão ou ação sem alternativas não
está sujeita a julgamento.
Tudo isso é uma operação ideológica primária,
que só prospera
em um ambiente
de desmoralização do pensamento. A idéia de ausência de alternativas é sempre falsa, pois as possibilidades inscritas
no real são sempre muito maiores
do que o que está
em via de realizar-se em um dado
momento. Nenhum conjunto
de opções preenche o campo do
possível, nenhum
é inevitável. A escolha que fazemos
em cada momento é uma entre
muitas e é responsabilidade nossa.
Folha - Em "O
Triunfo da Razão
Cínica", artigo publicado na revista
"Caros Amigos", o
sr. declarou a morte do PT. Depois,
pediu desculpas,
mas não retirou as
críticas. Afinal, o PT morreu?
Benjamin - Fui dirigente do PT
durante mais de 15 anos, num período em que tentamos construir
um partido socialista, democrático e de massas. Fui embora depois
da campanha de 1994, quando vi
que o ovo da serpente estava incubado. De lá para cá, tudo piorou,
com a ascensão fulminante dos
Delúbios e a marginalização das
Heloísas. Aquelas três características essenciais do nosso projeto
desapareceram completamente
da vida e do imaginário do PT.
Por isso o partido está morrendo.
Estamos assistindo ao fim de
um ciclo de existência da esquerda brasileira, cuja crise é profundíssima. É uma crise de prática,
pois a esquerda rompeu seus laços de convivência e solidariedade com o povo; é de valores, pois
ela respira hoje a cultura do pragmatismo, do oportunismo e do
individualismo; é de pensamento,
pois nesse contexto perdem-se de
vista os verdadeiros problemas e
potencialidades da sociedade brasileira. Não se resolve isso pela
criação de uma nova sigla, mas
pela construção de novas práticas,
valores e pensamentos, o que é
um processo incomparavelmente
mais difícil. Mesmo assim, muitas
pessoas dedicam-se a preparar esse caminho há vários anos.
Folha - O sr. dirige um fórum de
movimentos sociais, outra base cara de apoiadores de Lula. Que papel que esses movimentos terão?
Benjamin - O governo está pendurado na popularidade pessoal
de Lula, que por sua vez decorre
da necessidade, compreensível e
legítima, que as pessoas têm de se
apegar a uma esperança. Não se
pode dizer quanto tempo isso dura. Os movimentos sociais só terão capacidade de ação minimamente eficaz depois que o descontentamento difuso se espalhar,
criando uma legitimidade social
de fundo para que eles recuperem
a autoconfiança e percebam a necessidade de agir. Acho que isso
poderá começar a ocorrer já no
próximo ano. Mas é uma avaliação muito subjetiva.
Folha - Lula tem popularidade alta não só no Brasil. São depositadas nele esperanças de esquerda
de toda a América Latina. Quais as
perspectivas da esquerda no continente?
Benjamin - Na última década, os
Estados nacionais do continente
foram em grande medida desmontados e desmoralizados, enfraquecendo-se instituições essenciais para o exercício da soberania e da cidadania. A monitoração externa dos atos de governo
tornou-se rotina. As moedas nacionais se enfraqueceram ou, em
diversos casos, foram simplesmente abolidas. Houve ampla
desnacionalização da base produtiva e dos recursos naturais. Os espaços econômicos estão sob
ameaça de extinção, com a criação da Alca. Intensificaram-se
movimentações em torno do Plano Colômbia que prenunciam
um aumento da presença militar
externa na região amazônica. Se
esses processos não forem revertidos, o cenário estrutural do continente terá sido dramaticamente
alterado já no fim desta década. A
evolução recente
dos acontecimentos na Argentina,
na Bolívia e na Venezuela mostra,
no entanto, que
poderemos reagir.
O Brasil está
imerso nessa crise
continental, mantendo porém as
características estruturais que lhe
são peculiares: a
continentalidade
do território, a
grande massa demográfica, uma
base técnica razoavelmente desenvolvida, uma
economia cheia
de potencial,
enorme capacidade de criação cultural. É o grande
país periférico das
Américas, um dos
cinco ou seis grandes países periféricos do mundo.
Vive uma crise
grave, mas tem
enorme potencial
para superá-la. É
insubstituível na criação do projeto de uma área regional de cooperação e desenvolvimento, com
presença autônoma no mundo, e
que poderá ser o embrião de uma
federação continental -latino e
americano. Parece um sonho,
mas a história, a longo prazo,
sempre foi feita pelos sonhadores.
Os chamados realistas desaparecem sem deixar vestígios.
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