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FOLCLORE POLÍTICO
Os quase mártires das Diretas Já
FERNANDO MORAIS
O inverno ainda estava longe,
mas fazia um frio insuportável em São Paulo naquele 25 de
abril de 1984. Depois de juntar
multidões de até 1,5 milhão de
pessoas em praças públicas de todo o país, o movimento Diretas Já
iria enfrentar a prova final: naquela tarde o Congresso votaria a
emenda restabelecendo as eleições diretas para presidente. Uma
semana antes o presidente Figueiredo decretara que Brasília e
mais dez municípios em torno do
Distrito Federal ficariam sob "estado de emergência". Na manhã
do dia 25, o Departamento Nacional de Telecomunicações proibiu
as transmissões da votação da
emenda pela TV e pelo rádio. A
estação que infringisse a norma
teria a concessão cassada.
A censura nos apanhou de surpresa. Em São Paulo um grupo de
deputados estaduais de oposição
havia montado um palanque na
praça da Sé, de onde pretendíamos retransmitir, com a ajuda de
um telão, a cobertura de tevê da
votação. Com a decisão do Dentel, porém, nosso plano tinha ido
por água abaixo.
O autor da idéia salvadora foi o
então secretário-geral do PT paulista, José Dirceu: a pedido do governador Franco Montoro, do
PMDB, a Telesp instalou no palanque uma linha telefônica (a
telefonia celular ainda era uma
tecnologia inexistente), com a
qual nos comunicaríamos com a
Câmara, em Brasília. Dirceu localizou na capital federal um
companheiro de exílio, Abelardo
Blanco, e encarregou-o de conseguir um telefone no plenário do
qual pudesse ligar a cobrar para o
nosso número, na Sé. Deu certo.
Ao meio-dia o vozeirão do deputado Ulysses Guimarães ecoou pelos alto-falantes da praça, onde já
se aglomeravam 30 mil pessoas:
"Povo de São Paulo! O arbítrio
lhes roubou o direito de receber
informações sobre o que ocorre
na capital do país, mas não lhe
rouba a disposição de ir às ruas
em busca dessa informação".
José Dirceu e os deputados Geraldo Siqueira, Sérgio Santos e eu
nos revezamos durante toda a
tarde repetindo as notícias transmitidas por Blanco e colocando
no ar entrevistas com políticos.
Aquele mecanismo primitivo se
convertera na única fonte de informação sobre o que se passava
em Brasília. Só às seis da tarde começou a votação. Cada voto era
"cantado" por nós ao microfone;
os "sim" seguidos de aplausos, os
"não", de vaias ensurdecedoras.
Às duas horas da madrugada,
pontualmente, o senador Moacir
Dalla proclamou o resultado:
apesar de ter obtido 298 votos favoráveis (contra 65), a emenda
não alcançara o quórum de dois
terços. As diretas estavam sepultadas. A reação da multidão que
passara o dia sob a garoa fina foi
surpreendente: algum político tinha que pagar pela derrota, e os
mais próximos éramos nós. Alguém teve a idéia de tocar fogo
em jornais velhos e atirá-los, em
chamas, sob nosso palanque. Em
poucos segundos retiramos fios,
microfones e telefones e escapamos dali a galope, a salvo de nos
transformarmos, injustamente,
em mártires das Diretas Já.
Fernando Moraes, 56, escritor e jornalista, escreve aos domingos nesta seção
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