São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FOLCLORE POLÍTICO

Os quase mártires das Diretas Já

FERNANDO MORAIS

O inverno ainda estava longe, mas fazia um frio insuportável em São Paulo naquele 25 de abril de 1984. Depois de juntar multidões de até 1,5 milhão de pessoas em praças públicas de todo o país, o movimento Diretas Já iria enfrentar a prova final: naquela tarde o Congresso votaria a emenda restabelecendo as eleições diretas para presidente. Uma semana antes o presidente Figueiredo decretara que Brasília e mais dez municípios em torno do Distrito Federal ficariam sob "estado de emergência". Na manhã do dia 25, o Departamento Nacional de Telecomunicações proibiu as transmissões da votação da emenda pela TV e pelo rádio. A estação que infringisse a norma teria a concessão cassada.
A censura nos apanhou de surpresa. Em São Paulo um grupo de deputados estaduais de oposição havia montado um palanque na praça da Sé, de onde pretendíamos retransmitir, com a ajuda de um telão, a cobertura de tevê da votação. Com a decisão do Dentel, porém, nosso plano tinha ido por água abaixo.
O autor da idéia salvadora foi o então secretário-geral do PT paulista, José Dirceu: a pedido do governador Franco Montoro, do PMDB, a Telesp instalou no palanque uma linha telefônica (a telefonia celular ainda era uma tecnologia inexistente), com a qual nos comunicaríamos com a Câmara, em Brasília. Dirceu localizou na capital federal um companheiro de exílio, Abelardo Blanco, e encarregou-o de conseguir um telefone no plenário do qual pudesse ligar a cobrar para o nosso número, na Sé. Deu certo. Ao meio-dia o vozeirão do deputado Ulysses Guimarães ecoou pelos alto-falantes da praça, onde já se aglomeravam 30 mil pessoas: "Povo de São Paulo! O arbítrio lhes roubou o direito de receber informações sobre o que ocorre na capital do país, mas não lhe rouba a disposição de ir às ruas em busca dessa informação".
José Dirceu e os deputados Geraldo Siqueira, Sérgio Santos e eu nos revezamos durante toda a tarde repetindo as notícias transmitidas por Blanco e colocando no ar entrevistas com políticos. Aquele mecanismo primitivo se convertera na única fonte de informação sobre o que se passava em Brasília. Só às seis da tarde começou a votação. Cada voto era "cantado" por nós ao microfone; os "sim" seguidos de aplausos, os "não", de vaias ensurdecedoras.
Às duas horas da madrugada, pontualmente, o senador Moacir Dalla proclamou o resultado: apesar de ter obtido 298 votos favoráveis (contra 65), a emenda não alcançara o quórum de dois terços. As diretas estavam sepultadas. A reação da multidão que passara o dia sob a garoa fina foi surpreendente: algum político tinha que pagar pela derrota, e os mais próximos éramos nós. Alguém teve a idéia de tocar fogo em jornais velhos e atirá-los, em chamas, sob nosso palanque. Em poucos segundos retiramos fios, microfones e telefones e escapamos dali a galope, a salvo de nos transformarmos, injustamente, em mártires das Diretas Já.


Fernando Moraes, 56, escritor e jornalista, escreve aos domingos nesta seção



Texto Anterior: Mídia: Entre os "com-telefone", cai a diferença Serra-Garotinho
Próximo Texto: Reta Final: Lula diz que, se eleito, quer ouvir adversários
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.