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NO PLANALTO
Saúde pública vira DOI-Codi pós-moderno
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Há um lugar onde o Estado
ainda tolera a tortura. O
SUS converteu-se em sistema único de sevícias. Opera um novo instrumento de suplício: o pau-de-arara burocrático.
Esqueça-se, por batida, a imagem de doentes gemendo em macas abandonadas nos corredores
de hospitais. Tome-se, por modelar, o programa de combate à
Aids. Vem submetendo parte da
clientela a castigos insondáveis.
Aqui se relatará a saga de quatro neotorturados. Terão os nomes preservados. Sobrevivem à
Aids em Joinville (SC). Aposentados compulsoriamente, recebem
pensões de fome. Serviam-se de
coquetel de remédios ofertado pelo SUS (combinação de 15 tipos de
drogas).
Súbito, os medicamentos perderam o efeito. Como os doentes caminhassem rumo à sepultura, o
médico Luiz Henrique Melo receitou-lhes remédios novos, importados e caros. Coisa de R$
1.600 a R$ 1.800 mensais.
Não constavam da lista do governo. E o SUS refugou a prescrição. Impacientes, os pacientes foram ao Ministério Público. O procurador Davy Lincoln Rocha
comprou-lhes a briga em julho de
2001.
Acionada, a juíza federal Erika
Giovanni Reupke cobrou explicações às autoridades. Lançado ao
porão do SUS, o caso migrou da
seara médica para a jurídica.
Brasília iniciou a tortura. Alegou que só lhe cabe planejar e formular políticas. Não se sente
"obrigada especificamente à prestação dos serviços de saúde" (página 55 do processo judicial).
Santa Catarina deu sequência à
sessão de maus-tratos. Argumentou que União e Estados repassam verbas, "mas o município é
quem será responsável pela garantia da prestação de serviços"
(página 181 dos autos).
Joinville completou o ciclo de
crueldade. "Ora, se cabe ao Ministério da Saúde o registro, a autorização de importação [...], incompetente é o município para
decidir se este ou aquele medicamento deve ser utilizado" (página
67).
Em sentença válida para todo o
país, a juíza Erika Reupke ordenou o fornecimento das drogas.
Sob ameaça de prisão, os agentes
do porão recorreram sucessivas
vezes. Acumularam derrotas.
Um doente, em estágio terminal, desceu à cova. Outros três,
graças aos novos medicamentos,
tiveram a carga viral reduzida a
zero. Passam bem. Um dos medicamentos sonegados (Kaletra) foi
incorporado à lista oficial do SUS.
Outro (Tenofovir) aguarda regularização.
Os pacientes, que já se imaginavam a salvo do pau-de-arara administrativo, voltaram a sentir o
bafo acerbo da burocracia no dia
10 de março. Atendendo a novo
recurso de Brasília, o juiz Teori
Albino Zavaski, presidente do
TRF-4, revogou a sentença que
impusera o fornecimento dos remédios.
Aceitou-se a tese de que a decisão imporia transtornos econômicos incontornáveis ao governo.
O juiz citou na sentença o remédio Kaletra, cuja incorporação à
lista do SUS é fato consumado.
Levado ao pé da letra, o despacho devolverá os pacientes de
Joinville ao corredor da morte.
Como eles, encontram-se pendurados à farmácia do SUS 127 mil
pacientes de Aids. Não passam de
3.000 os casos que reclamam drogas alternativas.
Paulo Roberto Teixeira, chefe
do programa de Aids desde FHC,
diz que a demanda por novas medicações "tornou-se problema
grave". Em muitos casos, reconhece, são vitais. A única forma
de obtê-los é mesmo a via judicial.
"Seguimos a política de garantir os direitos dos pacientes." Por
que, então, os recursos protelatórios? "Na maioria dos casos a
prescrição imposta por sentença
não é a mais adequada. Há lobby
dos laboratórios."
O que fazer? "Deve-se abrir um
diálogo entre o setor de saúde e a
área judicial, para chegar a um
modelo ágil de avaliação da indicação médica. Temos como dar
resposta em até 48 horas."
No caso aqui relatado, tudo sucedeu às avessas. Em julho de
2001, o Estado soube que quatro
pacientes muito pobres e muito
moribundos necessitavam de ajuda. Podendo assegurar-lhes "os
direitos", empreendeu uma cruzada para negá-los.
A resposta final não veio em "48
horas". Chegou dois anos e três
meses depois do pedido de socorro. Não fosse "a prescrição imposta por sentença", talvez já estivessem mortos. Ao revogá-la, o TRF-4 reacomoda no pau-de-arara da
burocracia pacientes que estavam
postos em sossego.
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