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ESQUERDA NO DIVÃ
Contrariados com os rumos do governo, intelectuais oscilam entre a decepção aberta e a ponta de esperança
Lula provoca mal-estar na intelligentsia
FLÁVIA MARREIRO
GUILHERME BAHIA
DA REDAÇÃO
Ao apelo por "tensão ideológica" na academia e por compromisso com os rumos do país feito
na última semana pelo ministro
da Educação, Cristovam Buarque,
Luiz Werneck Vianna devolveu
uma provocação:
"O ministro não precisa se preocupar. O pensamento vai se radicalizar muito rapidamente no
Brasil. Há muita desesperança no
ar", disse o cientista político presidente da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que
até há pouco engrossava as fileiras
dos intelectuais ligados à esquerda, que, mesmo com críticas,
apoiavam o governo Lula.
O Orçamento 2004 e as declarações de que a política econômica
não deve mudar azedam ainda
mais a relação da "intelligentsia"
petista com o governo às vésperas
de completar um ano de gestão.
Há duas semanas, o mal-estar
ganhou impulso com a ameaça de
interpelação judicial do ministro
da Casa Civil, José Dirceu, contra
o sociólogo Francisco de Oliveira,
um dos principais teóricos de esquerda do país e fundador do PT.
Dirceu se sentiu ofendido com a
declaração de Oliveira em um seminário na UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro). O sociólogo se referiu ao ministro como um "espertalhão" da política.
No lançamento do segundo número da revista "Margem Esquerda" (Boitempo Editorial), na última quarta-feira na USP, o assunto
povoou todas as falas. "Não vou
citar o nome do presidente porque posso ser processado", brincou Oliveira, que relançava também no evento o livro "A Crítica
da Razão Dualista", acrescido do
posfácio "O Ornitorrinco", no
qual descreve a cúpula do PT como gestores de fundos de pensão
mais empenhados em seguir modelos de gestão financeira do que
em representar trabalhadores.
"Esqueça o PT, esqueça governo
federal", convocou o filósofo Paulo Arantes no lançamento, ao defender que a esquerda na América
Latina comece do zero a pensar
uma agenda pós-neoliberalismo.
"É um vazio ideológico que está
sendo preenchido por uma fraseologia nova, por um desenvolvimentismo requentado, por
idéias requentadas de projeção
nacional", disse Arantes em referência à política externa, uma das
poucas áreas em que o governo
arranca elogios na esquerda.
Reuniões periódicas
Oliveira e Arantes fazem parte,
porém, de um grupo crítico do
governo desde os primeiros passos do paloccismo. Mas outros sinais do desconforto também são
visíveis, como no texto do último
boletim da Fundação Perseu
Abramo, do PT, que acende "sinal
amarelo" para o presidente Lula.
A socióloga Maria Victoria Benevides, espécie de porta-voz dos
intelectuais de esquerda que têm
se reunido periodicamente com
Lula e com a cúpula do governo,
diz que há em todos os que fazem
parte do grupo, em maior ou menor grau, um desconforto com a
política econômica.
"O mal-estar está instalado",
confirma a filósofa Olgária Matos,
professora da USP. Com a ressalva: "Talvez ainda um mal-estar
minoritário. Não é de uma hora
para outra que se abandona um
presidente. Agora, que existe um
desconforto, existe". "Mas nós
não perdemos a crença no governo", diz Maria Victoria.
Entre o grupo, há o sentimento
de que a pressão dos movimentos
sociais pode desviar o governo do
"modelo neoliberal" e de que o
canal para isso é propiciado pelo
próprio governo. "Quando se verificou que Lula ia ganhar as eleições, o governo ficou um governo
misto, com todos os segmentos
representados, desde o grande capital até o MST", diz Olgária.
Embora creia que a contestação
seja o motor que pode fazer o governo dar uma guinada à esquerda, "às vezes o pessoal não aceita
críticas", diz o também filósofo
Wolfgang Leo Maar, da Universidade Federal de São Carlos. "Mas
essas críticas são boas. São fundamentais para que se evite aquele
modelo fiscalista", acrescenta. Parece contraditório? Maar responde: "Há contradições no governo,
e elas se resolvem na direção em
que há mobilização social".
O momento atual é visto como
de indefinição. Nada garante que
a pressão social fará o governo se
afastar da ortodoxia econômica.
"É um impasse", descreve Olgária
Matos. "Uma difícil travessia",
define Maar. Maria Victoria aposta que as mudanças virão, "em
menor ritmo do que esperávamos, mas virão". Outro participante do grupo, o filósofo Renato
Janine Ribeiro, também critica a
demora para mudar: "O PT sempre foi o partido da impaciência".
A heterogeneidade de pensamento, que o grupo de Maria Victoria vê como qualidade, para o
economista Reinaldo Gonçalves,
da UFRJ, significa que o governo
"não tem muita estratégia, fica
respondendo às circunstâncias".
Segundo ele, isso mostra que o PT
"não tem um projeto de sociedade, só um projeto de poder."
Paulo Arantes evoca o processo
de formação do partido para explicar: "Ele [o PT] pautou seu
crescimento pela indefinição estratégica e ideológica de um programa partidário".
Irônico, Gonçalves diz que não
está decepcionado. "Só se decepciona quem tinha ilusão. Como
eu não tinha ilusão, também não
me decepciono."
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