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NO PLANALTO
Crônica de uma brasileira que morreu de descaso
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Metalúrgico pobre,
adaptava os desejos à própria condição. "Eu queria ser
um bom profissional, ganhar o
meu salário, viver a minha vida."
Comprou a primeira casa com
dinheiro emprestado. "Ficava
numa rua que quando chovia
você não conseguia andar nem a
pé. Era tudo de barro, o esgoto
passava a céu aberto."
Casou-se em maio de 69. Ela,
uma operária tecelã. "Era morena, cabelos compridos, muito
bonita." Planejado, o filho só
veio em 71. No sétimo mês da
gravidez, a coisa tresandou.
A mulher contraiu hepatite.
Levou-a a um hospital público.
Disse: "Doutor, ela não está legal". A resposta soou-lhe atravessada: "O médico aqui sou
eu." Teve de brigar para vê-la
internada.
Embora aturdido, tinha esperanças. "Para mim, ela ia se tratar, ter o filho e voltar para casa." Foi visitá-la num domingo.
Encontrou-a em "situação deplorável".
Ela gritava muito. "Eu fui chamar a enfermeira, a enfermeira
não quis atender." Vencido o
horário de visita, teve de ir embora. No dia seguinte, foi levar
roupinhas para a criança. Descobriu que esperança de pobre é
a primeira que mata.
"Cheguei lá e ela estava morta.
Meu filho estava morto. Isso
marcou muito a minha vida."
Arquivou no íntimo uma convicção.
"Ninguém me tira da cabeça
que ela morreu por negligência
da rede hospitalar do Brasil, por
problema de relaxamento médico. Poderia ter sido melhor tratada. Morreu sem que houvesse
nenhuma assistência."
Com o tempo, soergueu-se. Casou-se de novo. Teve outros filhos. Progrediu além do imaginado. Trocou macacões amarfanhados por Armanis bem talhados. Virou presidente da República.
Chama-se Luiz Inácio Lula da
Silva. Com insuspeitados focos
de prosperidade na cintura, habita o Alvorada desde janeiro.
Tem sob si, suprema ironia, todo
o sistema de saúde pública. Uma
engrenagem que ainda padece
da mesma incúria que ceifou a
vida de Lurdes, sua primeira
mulher.
A experiência pessoal, relatada à biógrafa Denise Paraná e
registrada no livro "Lula -o Filho do Brasil", o fez portador de
um diagnóstico acurado acerca
das necessidades do paciente.
Mas age com inesperado descaso.
Confiou a pasta da Saúde a
um obscuro companheiro petista, Humberto Costa. Promoveu
o esquartejamento político da
saúde pública. O ruim vai ficando pior. O razoável desanda. Insinua-se o desastre.
Confrontado com fenômenos
como o derretimento de organizações do porte do Inca (Instituto Nacional do Câncer), Humberto Costa persevera no equívoco. Sob o petismo, para ocupar
postos na burocracia da saúde,
"é preciso ter um lado", diz ele.
Refere-se não ao lado da clientela que morre de descaso, mas
ao lado "esquerdo" do espectro
político. "Vamos governar com
inimigos?", pergunta. Ele mesmo responde: "Vamos continuar
a trabalhar com gente competente, mas que tenha lado".
O episódio do Instituto do
Câncer encarregou-se de expor
um naco da "competência" que
o ministro logrou recrutar.
Quanto à ideologia, se resolvesse
problema de saúde, Vladimir
Ilich Ulianov, vulgo Lenin, não
teria virado múmia.
Experimente-se oferecer a um
doente acomodado num leito do
Inca uma terapia trotskista, stalinista, leninista, maoísta, albanesa ou, digamos, petista. Ele
provavelmente gritará: "Capricha na morfina".
Quando levou a sua Lurdes a
um hospital público, Lula não
estava atrás de um sistema de
idéias dogmaticamente organizado como um instrumento de
luta política. Buscava simplesmente um médico atencioso e
capaz.
Assim, recomenda-se a Humberto Costa e ao próprio Lula
que procurem um oculista. O caso de ambos é de miopia. Convém evitar a rede pública.
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