|
Próximo Texto | Índice
Genes perversos
Caio Guatelli - 30.jan.2002/Folha Imagem
|
Pesquisador do Instituto Ludwig de São Paulo segura chip de DNA, usado em diagnóstico de câncer de mama |
A tese central do livro "A Culpa é da Genética" é assustadora e determinista: segundo a obra, somos constantemente possuídos por instintos ancestrais codificados nos genes que tendem a comandar as ações das criaturas habitadas por eles
|
A Culpa é da Genética
240 págs., R$ 19,90
de Terry Burnham e Jay Phelan. Editora Sextante (av. Nilo Peçanha,
155/301, Centro, CEP 20020-100, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/
2524-6760).
Luis David Castiel
especial para a Folha
Os caprichos da cultura certamente desempenham um papel importante, mas as tendências e os conceitos de beleza ainda se baseiam
principalmente em um fundamento biológico. Considere a ligação óbvia e praticamente invisível
entre beleza e saúde. Quem você preferiria beijar: uma
pessoa saudável ou uma pessoa com vários sintomas de
doença? Um incrível atleta como Michael Jordan ou alguém preguiçoso e desajeitado? Ou alguém com o nariz
escorrendo?
O trecho acima é uma pequena amostra das idéias e
afirmações da obra "A Culpa é da Genética" (leia-se
"genética" como constituição gênica, não como disciplina da biologia). Nele proliferam outros conceitos e
proposições discutíveis como beleza, saúde, aparência
capaz de nos provocar vontade de beijar como indicador de muita beleza ou aparência de preguiça e falta de
jeito como indicador de pouca beleza etc.
O título original é "Mean Genes" (Genes Perversos), e
a intenção primordial do livro é trazer alívio a respeito
de muitas mazelas que nos atingem na atualidade. Sobretudo aquelas originadas a partir da perda de "autocontrole" diante das muitas fontes de perdição ao nosso
redor. A tese central é assustadora: somos constantemente possuídos por instintos ancestrais que tendem a
comandar as ações das criaturas habitadas por eles.
Atuam como se fossem monstros interiores, programados pelos nossos próprios genes, que operariam como
conspiradores endógenos, responsáveis por nossa "insensatez", resultante de constantes crises da nossa
incapacidade de pôr rédeas na busca de domínio de
nosso "eu racional" nas experiências da vida.
Muito tempo atrás, os genes não teriam sido nocivos
para os seres humanos, caçadores-coletores. Com mudanças socioculturais, muitas funções gênicas teriam se
tornado superadas e adaptativamente desvantajosas.
Em vários aspectos, os genes teriam ficado perniciosamente "demodés". Fariam, hoje, com que não tivéssemos limites em nossos desejos e na busca compulsiva
de prazeres que se manifestariam em dificuldade para
economizar, ingestão incontrolada de alimentos, uso de
drogas, exposição irracional a riscos, ganância e conflitos entre os sexos. Além disso, há explicações naturalizadas para a busca da beleza e juventude, para a infidelidade e para os ambivalentes laços familiares e interpessoais. Como conclusão, há um enaltecimento dos esforços para "sobreviver a nossos desejos".
Esta é a perspectiva dos dois autores, acadêmicos de
Harvard: Terry Burnham, professor de economia, e Jay
Phelan, de biologia. A obra em foco recebeu considerável destaque em termos publicitários. É flagrante a presença do material propagandístico nas livrarias e, também, em locais bastante populares (como nos vidros
das janelas traseiras de transportes coletivos da cidade
do Rio de Janeiro). Está dirigida ao público em geral,
para o qual, no desfecho de cada capítulo, oferece conselhos, sugestões de auto-ajuda (em termos de reforço
da prudência e do comedimento das instâncias lógico-racionais) para nos orientar a evitar os descaminhos e
tentações da civilização repleta de traiçoeiros atrativos
compulsivamente oferecidos para todos.
Só Darwin salva Há ênfase explícita no caráter científico do texto. Ao mesmo tempo, percebe-se a intenção
de tornar amena a leitura (252 notas e referências acadêmicas a estudos não foram incluídas no livro, mas
podem ser acessadas no portal correspondente,
www.meangenes.org). Emprega-se um estilo que se
pretende fácil, no qual proliferam tentativas de humor
duvidoso para o público não afeito ao ambiente cultural
americano. Como indicam os autores no início, trata-se
de um "guia do usuário para seu cérebro", pois ele não
se comportaria com um servo obediente. Para isso, deveríamos evitar as explicações propostas por Freud e
nos ancorar nas leituras ultradarwinistas da biologia,
que nos trariam uma reconstrução supostamente mais
científica da "natureza humana".
Isso deverá servir para nos municiar em busca da salvação, mediante o desarme das estratégias danosas dos
genes perversos em nossas entranhas. Por exemplo: para não gastar dinheiro desmesuradamente, devemos escondê-lo de nós mesmos, depositando-o em uma conta
separada de difícil acesso. O inimigo está dentro das
trincheiras e o preço da felicidade é a eterna vigilância.
Talvez fosse possível não levar a sério essa abordagem
empobrecedora do comportamento humano proposta
pela genética evolucionista de linhagem sociobiológica,
em suas tentativas de estabelecer leis biocientíficas regentes do comportamento humano. Porém, importa
aqui ressaltar aspectos cruciais que, muitas vezes, não
recebem a devida atenção.
A ciência costuma ser encarada como uma instância
separada da sociedade, mais do que produto seu. Os conhecimentos da genética tendem a ser considerados como resultantes da busca objetiva dos cientistas pelas
"verdades dos fatos". Em geral, é reduzida a discussão
tanto acerca das instabilidades e limitações dos dispositivos científicos na busca do conhecimento como os
modos como a cultura influi nos encaminhamentos das
atividades científicas. Em termos mais específicos: o
que se define como questão científica, o que se convenciona como objeto de estudo, como são feitas as pesquisas, como se fixam critérios que determinam a pretendida verdade de um fato, como se dá a difusão científica
e comunicação pública dos achados. Sobretudo, importa estabelecer e distinguir quais são as relações entre poder e conhecimento nessa arena fervilhante.
Além disso, é preciso levar em conta o fato de essa disciplina estar ideologicamente identificada com uma
concepção da dinâmica social moldada no interior do
liberalismo avançado globalizante e com seus valores
individualistas de liberdade de escolha e consumismo.
Nessas circunstâncias, é importante criar condições para que as pessoas se autogovernem em função da referência a uma "natureza humana", e não diante da perspectiva de que humanos se tornam pessoas no processo
de viver em sociedade. Para os adeptos da sociobiologia, existe uma natureza humana, ou, melhor dizendo,
uma "condução humana" via genoma. Desse modo, genes adquirem estatuto antropomórfico, podendo ser
perversos ou bons, ou gays, criminosos, adictivos -entre outras qualificações. Uma das obras mais populares
dessa vertente se chama justamente "O Gene Egoísta",
escrita pelo biólogo Richard Dawkins.
Há forte sustentação acadêmica da sociobiologia na
busca por estabelecer, há mais de três décadas, as bases
genéticas do comportamento humano. É perceptível
sua vigorosa inserção institucional em termos de produção de trabalhos, difusão acadêmica e divulgação para o público não-especializado. Esse último aspecto
transparece na profusão de livros produzidos por vários pesquisadores: Edward Osborne Wilson (o patrono da sociobiologia), Steven Pinker, Richard Dawkins,
David Buss, Jared Diamond (todos eles receberam agradecimentos formais dos autores de "Mean Genes"), entre muitos outros.
Mesmo no interior das ciências da vida, ainda não há
elementos que corroborem o determinismo gênico do
comportamento humano. Esta é uma das conclusões
do relatório "Genetics and Human Behaviour - The
Ethical Context", do Conselho Nuffield de Bioética, lançado no Reino Unido em outubro de 2002. A respeitável
publicação chama a atenção para o fato de pesquisas
que procuram demonstrar associações entre variantes
genéticas específicas e traços comportamentais receberem substancial destaque tanto na mídia científica como na leiga. Mas os vários métodos de pesquisa nesse
campo não são infalíveis e poucos estudos puderam ser
repetidos com sucesso até o momento. Deve-se ter cuidado com os achados divulgados pela linha de pesquisa
da genética comportamental, por serem potencialmente passíveis de conclusões enganosas.
Tal aspecto deve ser visto com atenção, diante da capacidade de essas narrativas e tecnologias genéticas se
arvorarem, como mencionado, a desvendar contornos
da natureza humana. Assim, serviriam como fonte de
concepções de normalidade, indivíduo, sociedade, de
modo a estabelecer critérios para a gestão biopolítica de
lugares sociais e de intervenções e controles regulatórios de populações. Em razão de conhecidos eventos de
triste memória, é inevitável desconfiar da possibilidade
de retorno de espectros eugênicos.
Em suma, é uma área atribulada da investigação em
genética, repleta de controvérsias apaixonadas e extrapolações polêmicas. Há questões envolvendo a validade
de alguns métodos de pesquisa. Via de regra, é difícil especificar e entender a ação dos fatores genéticos, assim
como é árduo circunscrever e dimensionar os traços
comportamentais. Ainda não é possível estabelecer correlações entre um simples gene e um traço comportamental, nem as interações complexas entre grupos de
genes envolvidos na predisposição de um indivíduo a
possuir um traço em particular. É também complicado
isolar a participação extragenética no comportamento e
nos genes e influências genéticas na esfera dita ambiental.
Podemos, em um exercício especulativo ou como ficção científica, imaginar, no limite, que eventualmente
os sociobiólogos venham provar que suas teses estão
corretas. Quem sabe, talvez, se torne possível assim determinar a existência da estrutura gênica responsável
por seus comportamentos como pesquisadores e divulgadores de teorias sobre sua própria natureza...
Luis David Castiel, 52, é pesquisador de ciências sociais em saúde do
Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro
Próximo Texto: Micro/Macro: Uma colisão de gigantes Índice
|