São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

Próximo Texto | Índice

Genes perversos

Caio Guatelli - 30.jan.2002/Folha Imagem
Pesquisador do Instituto Ludwig de São Paulo segura chip de DNA, usado em diagnóstico de câncer de mama



A tese central do livro "A Culpa é da Genética" é assustadora e determinista: segundo a obra, somos constantemente possuídos por instintos ancestrais codificados nos genes que tendem a comandar as ações das criaturas habitadas por eles


A Culpa é da Genética
240 págs., R$ 19,90
de Terry Burnham e Jay Phelan. Editora Sextante (av. Nilo Peçanha, 155/301, Centro, CEP 20020-100, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2524-6760).


Luis David Castiel
especial para a Folha

Os caprichos da cultura certamente desempenham um papel importante, mas as tendências e os conceitos de beleza ainda se baseiam principalmente em um fundamento biológico. Considere a ligação óbvia e praticamente invisível entre beleza e saúde. Quem você preferiria beijar: uma pessoa saudável ou uma pessoa com vários sintomas de doença? Um incrível atleta como Michael Jordan ou alguém preguiçoso e desajeitado? Ou alguém com o nariz escorrendo?
O trecho acima é uma pequena amostra das idéias e afirmações da obra "A Culpa é da Genética" (leia-se "genética" como constituição gênica, não como disciplina da biologia). Nele proliferam outros conceitos e proposições discutíveis como beleza, saúde, aparência capaz de nos provocar vontade de beijar como indicador de muita beleza ou aparência de preguiça e falta de jeito como indicador de pouca beleza etc.
O título original é "Mean Genes" (Genes Perversos), e a intenção primordial do livro é trazer alívio a respeito de muitas mazelas que nos atingem na atualidade. Sobretudo aquelas originadas a partir da perda de "autocontrole" diante das muitas fontes de perdição ao nosso redor. A tese central é assustadora: somos constantemente possuídos por instintos ancestrais que tendem a comandar as ações das criaturas habitadas por eles. Atuam como se fossem monstros interiores, programados pelos nossos próprios genes, que operariam como conspiradores endógenos, responsáveis por nossa "insensatez", resultante de constantes crises da nossa incapacidade de pôr rédeas na busca de domínio de nosso "eu racional" nas experiências da vida.
Muito tempo atrás, os genes não teriam sido nocivos para os seres humanos, caçadores-coletores. Com mudanças socioculturais, muitas funções gênicas teriam se tornado superadas e adaptativamente desvantajosas. Em vários aspectos, os genes teriam ficado perniciosamente "demodés". Fariam, hoje, com que não tivéssemos limites em nossos desejos e na busca compulsiva de prazeres que se manifestariam em dificuldade para economizar, ingestão incontrolada de alimentos, uso de drogas, exposição irracional a riscos, ganância e conflitos entre os sexos. Além disso, há explicações naturalizadas para a busca da beleza e juventude, para a infidelidade e para os ambivalentes laços familiares e interpessoais. Como conclusão, há um enaltecimento dos esforços para "sobreviver a nossos desejos".
Esta é a perspectiva dos dois autores, acadêmicos de Harvard: Terry Burnham, professor de economia, e Jay Phelan, de biologia. A obra em foco recebeu considerável destaque em termos publicitários. É flagrante a presença do material propagandístico nas livrarias e, também, em locais bastante populares (como nos vidros das janelas traseiras de transportes coletivos da cidade do Rio de Janeiro). Está dirigida ao público em geral, para o qual, no desfecho de cada capítulo, oferece conselhos, sugestões de auto-ajuda (em termos de reforço da prudência e do comedimento das instâncias lógico-racionais) para nos orientar a evitar os descaminhos e tentações da civilização repleta de traiçoeiros atrativos compulsivamente oferecidos para todos.

Só Darwin salva Há ênfase explícita no caráter científico do texto. Ao mesmo tempo, percebe-se a intenção de tornar amena a leitura (252 notas e referências acadêmicas a estudos não foram incluídas no livro, mas podem ser acessadas no portal correspondente, www.meangenes.org). Emprega-se um estilo que se pretende fácil, no qual proliferam tentativas de humor duvidoso para o público não afeito ao ambiente cultural americano. Como indicam os autores no início, trata-se de um "guia do usuário para seu cérebro", pois ele não se comportaria com um servo obediente. Para isso, deveríamos evitar as explicações propostas por Freud e nos ancorar nas leituras ultradarwinistas da biologia, que nos trariam uma reconstrução supostamente mais científica da "natureza humana".
Isso deverá servir para nos municiar em busca da salvação, mediante o desarme das estratégias danosas dos genes perversos em nossas entranhas. Por exemplo: para não gastar dinheiro desmesuradamente, devemos escondê-lo de nós mesmos, depositando-o em uma conta separada de difícil acesso. O inimigo está dentro das trincheiras e o preço da felicidade é a eterna vigilância.
Talvez fosse possível não levar a sério essa abordagem empobrecedora do comportamento humano proposta pela genética evolucionista de linhagem sociobiológica, em suas tentativas de estabelecer leis biocientíficas regentes do comportamento humano. Porém, importa aqui ressaltar aspectos cruciais que, muitas vezes, não recebem a devida atenção.
A ciência costuma ser encarada como uma instância separada da sociedade, mais do que produto seu. Os conhecimentos da genética tendem a ser considerados como resultantes da busca objetiva dos cientistas pelas "verdades dos fatos". Em geral, é reduzida a discussão tanto acerca das instabilidades e limitações dos dispositivos científicos na busca do conhecimento como os modos como a cultura influi nos encaminhamentos das atividades científicas. Em termos mais específicos: o que se define como questão científica, o que se convenciona como objeto de estudo, como são feitas as pesquisas, como se fixam critérios que determinam a pretendida verdade de um fato, como se dá a difusão científica e comunicação pública dos achados. Sobretudo, importa estabelecer e distinguir quais são as relações entre poder e conhecimento nessa arena fervilhante.
Além disso, é preciso levar em conta o fato de essa disciplina estar ideologicamente identificada com uma concepção da dinâmica social moldada no interior do liberalismo avançado globalizante e com seus valores individualistas de liberdade de escolha e consumismo. Nessas circunstâncias, é importante criar condições para que as pessoas se autogovernem em função da referência a uma "natureza humana", e não diante da perspectiva de que humanos se tornam pessoas no processo de viver em sociedade. Para os adeptos da sociobiologia, existe uma natureza humana, ou, melhor dizendo, uma "condução humana" via genoma. Desse modo, genes adquirem estatuto antropomórfico, podendo ser perversos ou bons, ou gays, criminosos, adictivos -entre outras qualificações. Uma das obras mais populares dessa vertente se chama justamente "O Gene Egoísta", escrita pelo biólogo Richard Dawkins.
Há forte sustentação acadêmica da sociobiologia na busca por estabelecer, há mais de três décadas, as bases genéticas do comportamento humano. É perceptível sua vigorosa inserção institucional em termos de produção de trabalhos, difusão acadêmica e divulgação para o público não-especializado. Esse último aspecto transparece na profusão de livros produzidos por vários pesquisadores: Edward Osborne Wilson (o patrono da sociobiologia), Steven Pinker, Richard Dawkins, David Buss, Jared Diamond (todos eles receberam agradecimentos formais dos autores de "Mean Genes"), entre muitos outros.
Mesmo no interior das ciências da vida, ainda não há elementos que corroborem o determinismo gênico do comportamento humano. Esta é uma das conclusões do relatório "Genetics and Human Behaviour - The Ethical Context", do Conselho Nuffield de Bioética, lançado no Reino Unido em outubro de 2002. A respeitável publicação chama a atenção para o fato de pesquisas que procuram demonstrar associações entre variantes genéticas específicas e traços comportamentais receberem substancial destaque tanto na mídia científica como na leiga. Mas os vários métodos de pesquisa nesse campo não são infalíveis e poucos estudos puderam ser repetidos com sucesso até o momento. Deve-se ter cuidado com os achados divulgados pela linha de pesquisa da genética comportamental, por serem potencialmente passíveis de conclusões enganosas.
Tal aspecto deve ser visto com atenção, diante da capacidade de essas narrativas e tecnologias genéticas se arvorarem, como mencionado, a desvendar contornos da natureza humana. Assim, serviriam como fonte de concepções de normalidade, indivíduo, sociedade, de modo a estabelecer critérios para a gestão biopolítica de lugares sociais e de intervenções e controles regulatórios de populações. Em razão de conhecidos eventos de triste memória, é inevitável desconfiar da possibilidade de retorno de espectros eugênicos.
Em suma, é uma área atribulada da investigação em genética, repleta de controvérsias apaixonadas e extrapolações polêmicas. Há questões envolvendo a validade de alguns métodos de pesquisa. Via de regra, é difícil especificar e entender a ação dos fatores genéticos, assim como é árduo circunscrever e dimensionar os traços comportamentais. Ainda não é possível estabelecer correlações entre um simples gene e um traço comportamental, nem as interações complexas entre grupos de genes envolvidos na predisposição de um indivíduo a possuir um traço em particular. É também complicado isolar a participação extragenética no comportamento e nos genes e influências genéticas na esfera dita ambiental.
Podemos, em um exercício especulativo ou como ficção científica, imaginar, no limite, que eventualmente os sociobiólogos venham provar que suas teses estão corretas. Quem sabe, talvez, se torne possível assim determinar a existência da estrutura gênica responsável por seus comportamentos como pesquisadores e divulgadores de teorias sobre sua própria natureza...


Luis David Castiel, 52, é pesquisador de ciências sociais em saúde do Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro



Próximo Texto: Micro/Macro: Uma colisão de gigantes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.