São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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Ciência em Dia

O complexo biológico-militar

Marcelo Leite
editor de Ciência

E quanto no Brasil demiurgos da pesquisa científica se debatem para induzir a formação de capitais de risco que viabilizem um setor biotecnológico empresarial, na pátria dos negócios de alta tecnologia ventos de outros quadrantes trazem novo impulso para a investigação biomédica. Mas há razão para se preocupar com a chance de que a brisa quente do Estado militarista americano se revele uma semente de tempestades.
De início pareceu que a vertente biotecnológica da nova economia resistiria melhor à fuga de investidores que a eletrônica, mas a calmaria também já está no encalço da primeira. Segundo reportagem de Peg Brickley na revista "The Scientist" (www.the-scientist.com) do último dia 11, quatro lançamentos de empresas amealharam US$ 26 milhões em 2002, contra US$ 110 milhões levantados por dez companhias em 2001.
A crise da indústria da biotecnologia também já havia sido noticiada por Andrew Pollack no jornal "The New York Times", há um mês, em reportagem reproduzida nesta Folha. Ali se dizia que cerca de 35% das companhias com ações na bolsa têm menos de um ano de verba disponível, no nível atual de gastos, segundo uma pesquisa recente feita pela consultoria Merrill Lynch. Desde o começo de julho, segundo dados da newsletter "BioCentury" (www.biocentury.com), pelo menos 45 companhias de biotecnologia nos EUA e na Europa haviam anunciado cortes.
Brickley indica na mesma "The Scientist", contudo, a alternativa de financiamento que os cientistas-empresários (ou seriam empresários-cientistas?) da biotecnologia já farejaram: verbas governamentais para a pesquisa de genomas de microrganismos, na esteira dos atentados com antraz e das ameaças de guerra biológica. Só o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid, na abreviação em inglês) está pedindo ao Congresso norte-americano US$ 104 milhões para pesquisa genômica de micróbios. Adivinhe se a recém-conquistada maioria republicana nas duas Casas não será sensível ao pedido.
E o Niaid é só uma das muitas agências dos EUA dispostas a desembolsar fundos para a genômica de segurança nacional. Uma relação parcial de siglas de organismos com bala na agulha (CIAFBINIAIDNSFDOEDODDARPA) se assemelha às sequências de letras de DNA (AGATTACAGATTACAGATTACAG).
Faro sensacional demonstrou a geneticista Claire Fraser, que dirige o Tigr (Instituto para Pesquisa Genômica) criado por seu marido, J. Craig Venter, o cientista-empresário que infernizou o Projeto Genoma Humano ao abrir a empresa Celera para concorrer com a iniciativa pública. (Catapultado da Celera, Venter hoje tenta transformar serviços genômicos para pessoas físicas em um novo nicho empresarial-científico.) Fraser deu a sorte de já estar trabalhando no sequenciamento do Bacillus anthracis quando houve o 11 de setembro de 2001 e os atentados subsequentes com a bactéria. O Niaid comparece hoje com algo entre um quarto e um terço do orçamento de pesquisa do Tigr, segundo Brickley, ou cerca de US$ 40 milhões.
Muitos pesquisadores nessa situação dirão que dinheiro não tem cheiro e que estão produzindo ciência básica, também, enquanto colaboram com a segurança nacional dos EUA. Pode até ser. Mas também há muita gente séria preocupada com o preço a ser pago pelos pesquisadores atraídos para o nascente complexo biológico-militar naquela que é a moeda mais cara para a ciência: a livre circulação de informações.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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