|
Próximo Texto | Índice
+ ciência
NOVO ESTUDO MOSTRA QUE EXTINÇÃO DE GRANDES MAMÍFEROS
DA IDADE DO GELO FOI CAUSADA POR UMA GUERRA LENTA CONTRA
OS SERES HUMANOS E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
RÉQUIEM PARA O MAMUTE
Reuters/The Page Museum at the La Brea Tar Pits
|
|
Recriação em computador de esqueleto do mamute-lanudo (Mammuthus primigenius), espécie da megafauna do Pleistoceno extinta há cerca de 10 mil anos
Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local
Ninguém costuma levar muito a sério as lições da
história. Vide os americanos, supostamente escolados pelo trauma do Vietnã, e repetindo agora erros semelhantes no Iraque. Mas muito mais
grave para a humanidade que uma potência imperial embarcar num atoleiro político-militar, no entanto, é o dano
que pode ser causado à biodiversidade do planeta.
O patrimônio genético da Terra é fundamental para o
bem-estar futuro do ser humano -para adotar uma visão
estritamente utilitarista das coisas. Dele vêm comida, remédios, diversão. Erros graves no passado relacionados à
extinção de espécies tenderão a ser repetidos em escala
muito mais impressionante no futuro próximo, se não
houver uma correção de rumo.
Extinções fazem parte do cotidiano da vida na Terra. Espécies surgem e desaparecem, às vezes de modo espetacular, como quando um asteróide se choca com o planeta e
cria um "inverno nuclear", sem luz para plantas, sem
plantas para comedores de plantas e sem comedores de
plantas para os carnívoros que os comem. Isso aconteceu
há 65 milhões de anos, no final do Período Cretáceo, e 60%
das espécies terrestres foram eliminadas -incluindo os
dinossauros. Espécies "dançam" quando perdem a capacidade de se adaptar ao ambiente. Pode ser porque predadores acabaram com elas; pode ser porque mudanças no
ambiente, notadamente no seu clima, tornaram mais difícil sua sobrevivência.
O ser humano moderno tem a capacidade de arrasar espécies com facilidade. Foi o caso, no século 18, da ave dodô
das Ilhas Maurício, no oceano Índico, e de vários outros
seres desde então. Em ilhas, a mortandade é tradicional. O
espaço é pequeno, os fatores de extinção são variados e
atuantes. As vítimas não têm para onde fugir.
Megafauna
Justamente por ser óbvio esse forte impacto em ilhas que surgiram hipóteses de que algo parecido
possa ter ocorrido nos continentes. No século 20, o ser humano conseguiu a proeza de também mudar o próprio
clima da Terra, ao intensificar de forma radical o efeito estufa (a concentração de certos gases na atmosfera que
aquecem o planeta ao reter o calor que ele irradia).
Um novo estudo reavaliando o papel do ser humano em
extinções de grandes animais na pré-história mostra que
elas foram causadas por dois motivos básicos. Parte do
problema foi a mudança climática natural, que afeta principalmente a vegetação e, em seguida, num efeito dominó,
os herbívoros e os carnívoros; contudo, parte da mortandade foi obra de um punhado de caçadores armados com
meras lanças com pontas de pedra.
O impacto foi grande. Cinqüenta mil anos atrás, havia
150 gêneros da chamada "megafauna", animais com mais
de 44 kg de peso. Dez mil anos atrás sobrou um número
bem menor desses bichos: pouco mais que um terço. Foram extintos 97 dos gêneros.
Não havia muitos seres humanos na pré-história, antes
da invenção da agricultura, 10 mil anos atrás. Neste momento havia apenas uns 5 milhões a 10 milhões de homens e mulheres, sobrevivendo por meio da caça e da coleta (hoje são mais de 6 bilhões). Mas mesmo essa humanidade reduzida podia causar graves estragos nos outros
animais. Tanto que a maior parte da megafauna que sobreviveu tem comportamentos que tornam mais difícil
sua caça: vivem em árvores ou em lugares frios, no interior
de florestas ou têm hábitos noturnos -a exceção são os
grandes animais da África e da Ásia, que, segundo alguns
pesquisadores, convivem com humanos há muito tempo
e, de certa forma, se adaptaram à sua presença.
A mudança climática afetou os grandes animais: há 10
mil anos também terminava uma era glacial. Mas o grande impacto foi cultural: o ser humano mais moderno, a espécie como ela existe hoje, com o nome científico Homo
sapiens, tinha um repertório bem mais sofisticado de ferramentas e armas do que seus ancestrais do mesmo gênero, como o Homo erectus e o Homo habilis. Estes "hominídeos" mais antigos caçaram a megafauna na Europa por
pelo menos 400 mil anos sem provocar extinções, segundo os autores do estudo, liderado por Anthony D. Barnosky da Universidade da Califórnia em Berkeley, e publicado na última edição da revista científica americana
"Science" (www.sciencemag.org).
Falácia naturalista
"Se os seres humanos causaram as
extinções, isso vai influenciar profundamente nosso pensamento sobre o que é "natural", sobre como os ecossistemas respondem a diferentes escalas e modos de mudança
ambiental", afirmam os autores do estudo. A coisa fica
mais grave quando confluem tanto a presença de caçadores mais sofisticados e a mudança climática. Foi o caso dos
"paleoíndios" da chamada cultura Clovis, que irromperam na América do Norte há pelo menos 11.500 anos. Mamutes-lanudos, preguiças-gigantes e outros bichos do
mesmo calibre eram excelentes fontes de proteína para o
homem pré-histórico. Não eram só as lanças, mas também as táticas de caça coletivas que tornavam esses animais gigantes presa fácil do menor mas mais inteligente
-e aguerrido- Homo sapiens.
Grandes espécies animais têm baixos padrões de reprodução. Elefantes têm menos filhotes que veados, que por
sua vez têm menos filhotes que cães ou gatos. Essas espécies de megafauna, que têm poucos filhotes e que levam
mais tempo para crescer, ficam mais vulneráveis. São,
portanto, vítimas mais fáceis para os caçadores pré-históricos. Segundo Barnosky e colegas, os dados relativos à
América do Norte são mais precisos, indicando o efeito devastador da conjugação do homem com a mudança climática. Já os dados sobre o hemisfério sul, basicamente Austrália e América do Sul, ainda não mostraram nada tão
conclusivo. A sobrevivência na África de grandes animais
vivendo em campo aberto, também com taxas de reprodução lentas, é uma exceção ao padrão de devastação que
precisa ser melhor estudada.
A ação humana sobre a megafauna é comparada pelos
cientistas com uma verdadeira guerra. Há duas hipóteses
básicas, tiradas do alemão: "Blitzkrieg" e "Sitzkrieg".
"Blitzkrieg" é a "guerra relâmpago", na qual a súbita aparição de hábeis seres humanos caçadores levou a uma
mortandade acelerada dos grandes animais. O termo foi
proposto em 1967 pelo geólogo americano Paul Martin, da
Universidade do Arizona. Com base nas quantidades industriais de ossos de mamute encontrados junto a pontas-de-lança da cultura Clovis em vários sítios nos EUA, Martin elaborou um modelo que previa a expansão muito rápida dos caçadores da Era do Gelo pela América do Norte.
Eles teriam dado cabo da megafauna em mil anos -menos que um piscar de olhos, em tempo geológico. Os dados
de Martin foram criticados por arqueólogos e paleoecólogos, mas confirmados por estudos recentes ao menos para
a maior parte do subcontinente norte-americano.
"Sitzkrieg" é a "guerra de posição", lenta, na qual fatores
como fogo, fragmentação de habitats ou a introdução de
doenças ou de espécies de fora (predadoras ou competidoras) vão aos poucos fazendo a megafauna desaparecer.
Barnosky e colegas afirmam que as provas disponíveis
-dados arqueológicos, paleontológicos e climáticos-
indicam que não houve uma "Blitzkrieg" humana na Europa, na Sibéria, no Alasca e, "provavelmente", na Austrália e região central da América do Norte. Sem as mudanças
climáticas, dizem eles, ainda haveria cavalos por bem mais
tempo no Alasca, além de mamutes na Eurásia. A América
do Sul é um dos campos de estudo mais promissores sobre
este tema. Foi o subcontinente que mais teve gêneros de
megafauna extintos -50, comparados com 33 na América
do Norte, 21 na Austrália, 9 na Europa e 8 na África.
"Na América do Sul, os dados publicados de cronologia
de extinção estão se acumulando, mas aguardam uma
análise crítica", afirmam Barnosky e colegas. Um grupo de
cientistas do Programa Biota, da Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), por exemplo,
atribuiu o declínio da megafauna brasileira a um aumento
na precipitação, que transformou o cerrado num cerradão
-tipo de vegetação mais fechada-, acabando com as
gramíneas que formavam a base da dieta dos herbívoros.
Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Testes parapsicológicos Índice
|