São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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NOVO ESTUDO MOSTRA QUE EXTINÇÃO DE GRANDES MAMÍFEROS DA IDADE DO GELO FOI CAUSADA POR UMA GUERRA LENTA CONTRA OS SERES HUMANOS E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

RÉQUIEM PARA O MAMUTE

Reuters/The Page Museum at the La Brea Tar Pits
Recriação em computador de esqueleto do mamute-lanudo (Mammuthus primigenius), espécie da megafauna do Pleistoceno extinta há cerca de 10 mil anos

Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local

Ninguém costuma levar muito a sério as lições da história. Vide os americanos, supostamente escolados pelo trauma do Vietnã, e repetindo agora erros semelhantes no Iraque. Mas muito mais grave para a humanidade que uma potência imperial embarcar num atoleiro político-militar, no entanto, é o dano que pode ser causado à biodiversidade do planeta. O patrimônio genético da Terra é fundamental para o bem-estar futuro do ser humano -para adotar uma visão estritamente utilitarista das coisas. Dele vêm comida, remédios, diversão. Erros graves no passado relacionados à extinção de espécies tenderão a ser repetidos em escala muito mais impressionante no futuro próximo, se não houver uma correção de rumo. Extinções fazem parte do cotidiano da vida na Terra. Espécies surgem e desaparecem, às vezes de modo espetacular, como quando um asteróide se choca com o planeta e cria um "inverno nuclear", sem luz para plantas, sem plantas para comedores de plantas e sem comedores de plantas para os carnívoros que os comem. Isso aconteceu há 65 milhões de anos, no final do Período Cretáceo, e 60% das espécies terrestres foram eliminadas -incluindo os dinossauros. Espécies "dançam" quando perdem a capacidade de se adaptar ao ambiente. Pode ser porque predadores acabaram com elas; pode ser porque mudanças no ambiente, notadamente no seu clima, tornaram mais difícil sua sobrevivência. O ser humano moderno tem a capacidade de arrasar espécies com facilidade. Foi o caso, no século 18, da ave dodô das Ilhas Maurício, no oceano Índico, e de vários outros seres desde então. Em ilhas, a mortandade é tradicional. O espaço é pequeno, os fatores de extinção são variados e atuantes. As vítimas não têm para onde fugir.

Megafauna
Justamente por ser óbvio esse forte impacto em ilhas que surgiram hipóteses de que algo parecido possa ter ocorrido nos continentes. No século 20, o ser humano conseguiu a proeza de também mudar o próprio clima da Terra, ao intensificar de forma radical o efeito estufa (a concentração de certos gases na atmosfera que aquecem o planeta ao reter o calor que ele irradia). Um novo estudo reavaliando o papel do ser humano em extinções de grandes animais na pré-história mostra que elas foram causadas por dois motivos básicos. Parte do problema foi a mudança climática natural, que afeta principalmente a vegetação e, em seguida, num efeito dominó, os herbívoros e os carnívoros; contudo, parte da mortandade foi obra de um punhado de caçadores armados com meras lanças com pontas de pedra. O impacto foi grande. Cinqüenta mil anos atrás, havia 150 gêneros da chamada "megafauna", animais com mais de 44 kg de peso. Dez mil anos atrás sobrou um número bem menor desses bichos: pouco mais que um terço. Foram extintos 97 dos gêneros. Não havia muitos seres humanos na pré-história, antes da invenção da agricultura, 10 mil anos atrás. Neste momento havia apenas uns 5 milhões a 10 milhões de homens e mulheres, sobrevivendo por meio da caça e da coleta (hoje são mais de 6 bilhões). Mas mesmo essa humanidade reduzida podia causar graves estragos nos outros animais. Tanto que a maior parte da megafauna que sobreviveu tem comportamentos que tornam mais difícil sua caça: vivem em árvores ou em lugares frios, no interior de florestas ou têm hábitos noturnos -a exceção são os grandes animais da África e da Ásia, que, segundo alguns pesquisadores, convivem com humanos há muito tempo e, de certa forma, se adaptaram à sua presença. A mudança climática afetou os grandes animais: há 10 mil anos também terminava uma era glacial. Mas o grande impacto foi cultural: o ser humano mais moderno, a espécie como ela existe hoje, com o nome científico Homo sapiens, tinha um repertório bem mais sofisticado de ferramentas e armas do que seus ancestrais do mesmo gênero, como o Homo erectus e o Homo habilis. Estes "hominídeos" mais antigos caçaram a megafauna na Europa por pelo menos 400 mil anos sem provocar extinções, segundo os autores do estudo, liderado por Anthony D. Barnosky da Universidade da Califórnia em Berkeley, e publicado na última edição da revista científica americana "Science" (www.sciencemag.org).

Falácia naturalista
"Se os seres humanos causaram as extinções, isso vai influenciar profundamente nosso pensamento sobre o que é "natural", sobre como os ecossistemas respondem a diferentes escalas e modos de mudança ambiental", afirmam os autores do estudo. A coisa fica mais grave quando confluem tanto a presença de caçadores mais sofisticados e a mudança climática. Foi o caso dos "paleoíndios" da chamada cultura Clovis, que irromperam na América do Norte há pelo menos 11.500 anos. Mamutes-lanudos, preguiças-gigantes e outros bichos do mesmo calibre eram excelentes fontes de proteína para o homem pré-histórico. Não eram só as lanças, mas também as táticas de caça coletivas que tornavam esses animais gigantes presa fácil do menor mas mais inteligente -e aguerrido- Homo sapiens.
Grandes espécies animais têm baixos padrões de reprodução. Elefantes têm menos filhotes que veados, que por sua vez têm menos filhotes que cães ou gatos. Essas espécies de megafauna, que têm poucos filhotes e que levam mais tempo para crescer, ficam mais vulneráveis. São, portanto, vítimas mais fáceis para os caçadores pré-históricos. Segundo Barnosky e colegas, os dados relativos à América do Norte são mais precisos, indicando o efeito devastador da conjugação do homem com a mudança climática. Já os dados sobre o hemisfério sul, basicamente Austrália e América do Sul, ainda não mostraram nada tão conclusivo. A sobrevivência na África de grandes animais vivendo em campo aberto, também com taxas de reprodução lentas, é uma exceção ao padrão de devastação que precisa ser melhor estudada.
A ação humana sobre a megafauna é comparada pelos cientistas com uma verdadeira guerra. Há duas hipóteses básicas, tiradas do alemão: "Blitzkrieg" e "Sitzkrieg".
"Blitzkrieg" é a "guerra relâmpago", na qual a súbita aparição de hábeis seres humanos caçadores levou a uma mortandade acelerada dos grandes animais. O termo foi proposto em 1967 pelo geólogo americano Paul Martin, da Universidade do Arizona. Com base nas quantidades industriais de ossos de mamute encontrados junto a pontas-de-lança da cultura Clovis em vários sítios nos EUA, Martin elaborou um modelo que previa a expansão muito rápida dos caçadores da Era do Gelo pela América do Norte. Eles teriam dado cabo da megafauna em mil anos -menos que um piscar de olhos, em tempo geológico. Os dados de Martin foram criticados por arqueólogos e paleoecólogos, mas confirmados por estudos recentes ao menos para a maior parte do subcontinente norte-americano.
"Sitzkrieg" é a "guerra de posição", lenta, na qual fatores como fogo, fragmentação de habitats ou a introdução de doenças ou de espécies de fora (predadoras ou competidoras) vão aos poucos fazendo a megafauna desaparecer. Barnosky e colegas afirmam que as provas disponíveis -dados arqueológicos, paleontológicos e climáticos- indicam que não houve uma "Blitzkrieg" humana na Europa, na Sibéria, no Alasca e, "provavelmente", na Austrália e região central da América do Norte. Sem as mudanças climáticas, dizem eles, ainda haveria cavalos por bem mais tempo no Alasca, além de mamutes na Eurásia. A América do Sul é um dos campos de estudo mais promissores sobre este tema. Foi o subcontinente que mais teve gêneros de megafauna extintos -50, comparados com 33 na América do Norte, 21 na Austrália, 9 na Europa e 8 na África.
"Na América do Sul, os dados publicados de cronologia de extinção estão se acumulando, mas aguardam uma análise crítica", afirmam Barnosky e colegas. Um grupo de cientistas do Programa Biota, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), por exemplo, atribuiu o declínio da megafauna brasileira a um aumento na precipitação, que transformou o cerrado num cerradão -tipo de vegetação mais fechada-, acabando com as gramíneas que formavam a base da dieta dos herbívoros.


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