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Ciência em Dia
Falta um Nobel para o Brasil
Marcelo Leite
editor de Ciência
O Brasil é um país ressentido pela falta de muitas coisas sem importância, de neve a um assento no Conselho de
Segurança na ONU, mas a ausência de
um Prêmio Nobel é mesmo de amargar.
Não serve um Nobel qualquer, porém. O
país precisa é de um Nobel loquaz como
John Sulston, que visitou o Brasil pela
primeira vez há coisa de dez dias e havia
abocanhado em 2002 a láurea em Medicina ou Fisiologia com Sydney Brenner
(outro desbocado) e Robert Horvitz.
Uma ocorrência anedótica ajuda a entender que tipo de pessoa é Sulston.
Num jantar privado em restaurante freqüentado pela elite espalhafatosa de São
Paulo, alguém lhe sugeriu experimentar
o peixe amazônico tambaqui. Com toda
a polidez, não se esquivou de fazer a pergunta incômoda: "Mas é [pescado de
forma] sustentável?"
Ninguém soube responder se a exploração do Colossoma macropomum respeitava padrões ambientais, e Sulston se
decidiu por um cherne, peixe atlântico.
Pode ser até que a pesca do Epinephelus
niveatus não seja sustentável, como pensam muitos ambientalistas a respeito da
indústria pesqueira em geral nos oceanos, mas o fato é que o Nobel pelo menos se preocupou com a situação do peixe brasileiro -coisa que nunca ocorreu
a um dos nacionais presentes.
Sir John obviamente não ganhou seu
Nobel por falar o que pensa. Ao contrário, a posse do prêmio é que lhe deu mais
liberdade para assumir o papel de Grilo
Falante da biotecnologia -no bom sentido, o de uma consciência crítica. Isso
ele já fazia nos bastidores do Projeto Genoma Humano (PGH), que ajudou a liderar quando dirigiu o Centro Sanger do
Reino Unido (um dos cinco grandes institutos de seqüenciamento, ou soletração, do DNA da espécie).
Sulston, britânico, foi a principal força
de oposição ao norte-americano Craig
Venter, o cientista-empresário que fundou a empresa Celera e ameaçou tirar o
genoma do PGH, terminando antes a soletração e obtendo propriedade intelectual sobre dezenas de milhares de genes.
Numa palestra em São Paulo, Sulston
deixou claro: não há invenção em soletrar o DNA, portanto o resultado do seqüenciamento não pode ser patenteado.
Como patrimônio da espécie, deve permanecer no domínio público -exatamente o oposto da posição de Venter e,
na realidade, de muitos biólogos moleculares, inclusive brasileiros. No jantar,
segredou que sua mulher, a bibliotecária
Daphne, é ainda mais radical: apesar de
ter encontrado Venter em muitas reuniões, nunca lhe apertou a mão.
Craig Venter terminou defenestrado
da Celera, que não estava conseguindo
fazer dinheiro com o genoma, mas hoje
trabalha em parceria com o Departamento de Energia (DOE) dos Estados
Unidos, que havia sido um dos principais financiadores do PGH (comparecendo com 11% dos estimados US$ 3 bilhões que o projeto custou). A sociedade
Venter-DOE envolve o seqüenciamento
por atacado de micróbios, para garimpar genes de interesse em aplicações como remediação ambiental (despoluição)
e produção de energia.
Sir John disse que "a ética do DOE não
era muito boa". E deu a entender que,
com exceção de Bob Waterston, outros
líderes americanos do PGH não pensam
de maneira assim tão diversa de Venter
no que respeita ao comercialismo que
está no DNA da biologia molecular.
O governo deveria presentear Sulston
com cidadania brasileira instantânea.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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