|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O bicho do eterno retorno
Físicos estudam a ressurreição da hidra, animal aquático que se reorganiza mesmo depois de ter seu corpo picado e centrifugado
IGOR ZOLNERKEVIC
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Pesquisadores da
UFRGS (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul) realizaram simulações
por computador que explicam
as primeiras etapas da regeneração total de um animal simples de água doce, de tamanho
milimétrico, que fascina os
cientistas desde o nascimento
da biologia, no século 18.
A hidra -batizada com o nome do monstro mitológico que
ganha outra cabeça sempre que
lhe decepam uma de suas muitas- tem um poder fantástico
de se recuperar de mutilações
em seu ambiente natural. Mas
é em laboratório que o bicho
realmente impressiona.
A física Rita de Almeida, da
UFRGS, ensina a receita. Pegue
de 20 a 50 hidras e pique-as em
pedacinhos. Coloque-os em
uma solução que desgruda as
células umas das outras. Ponha
a solução em uma centrífuga,
para embaralhar completamente as células.
Depois de algumas horas, as
células que não morreram se
juntam. Disforme no início, o
agregado de células se organiza, assumindo a forma de uma
esfera, feita de duas camadas. A
camada externa (ectoderme) e
a interna (endoderme) são feitas de células de dois tipos.
Após dois ou três dias de movimentos e transformações, surge uma nova hidra.
A primeira fase da regeneração, em que as células de dois
tipos -endodérmicas e ectodérmicas- se separam, é o que
o modelo de Almeida e seus colaboradores explica.
"Todos os modelos anteriores supunham que os dois tipos
de células grudam uns nos outros de maneiras diferentes",
conta Almeida. Os modelos,
porém, não explicavam o que
Jean-Paul Rieu observou em
1998, em seu laboratório na
Universidade Claude Bernard,
em Lion (França): a rapidez
com que as células se organizam e os movimentos giratórios que fazem.
As novas simulações, publicadas em junho na revista
"Physical Review Letters", explicam as observações de Rieu.
Os pesquisadores perceberam que faltava levar em conta
que as células são "maria-vai-com-as-outras". Elas seguem
as suas vizinhas como peixes
em um cardume.
O colega de Almeida na
UFRGS, Leonardo Brunnet, já
estudava um modelo desse tipo
de movimento coletivo, chamado de "boids", criado em
1986 por Craig Reynolds, da
empresa Sony, para animações
por computação gráfica. O primeiro filme a usar os boids foi
"Batman Returns", de 1992,
onde as partículas do modelo
(os "boids") representavam um
bando de morcegos.
Cada "boid" se move de olho
nos "boids" ao redor. "Os
"boids" imitam bem um bando
de animais porque fazem o
mesmo que eles: um movimento sem líder", diz Almeida.
"Como todo modelo matemático, ele é supersimplificado", comenta o biólogo Márcio
Custódio, da Universidade de
São Paulo, especialista em esponjas-do-mar -animal primitivo como as hidras e também
capaz de regenerações espetaculares. "É verdade que há dois
tipos de células, mas as camadas têm outros cinco ou seis tipos, cada um deles com mobilidade e estruturas diferentes.
Isso afeta bastante a migração.
Mas, no geral, o modelo mostra
o que acontece."
Para melhorar seus modelos,
os teóricos da UFRGS montaram um laboratório de biologia. "O que precisamos medir
para comparar com os modelos
não é o que os biólogos medem", diz Almeida.
Condomínio celular
Em uma hidra de verdade, as
células vão se transformando à
medida que se movem e tomam
suas posições para constituir o
organismo.
"Existem outros modelos
tentando explicar como as células se diferenciam, mas o processo não está totalmente descrito", explica Almeida. "Isso
tem até a ver com diferentes
desdobramentos do DNA, que é
outro problema fundamental."
O fato de as células da hidra
conseguirem sobreviver de maneira mais autônoma que, por
exemplo, as células do corpo
humano, sugere que estudar a
regeneração do animal pode revelar como surgiram os primeiros seres multicelulares.
"A vida levou 500 milhões de
anos desde o resfriamento da
crosta terrestre para aparecer",
diz Almeida. "Entre o primeiro
sinal de vida e o primeiro sinal
de vida multicelular levou sete
vezes mais tempo. Parece verdade que é mais difícil conviver
do que viver."
Trechos da história de como
surgiram os organismos multicelulares podem ser mais evidentes nas hidras, mas também
aparecem no desenvolvimento
de embriões de seres mais complexos, como os humanos. "Se
você dissocia as células de um
embrião quando elas são ainda
quatro ou oito, elas podem se
reagregar", diz Custódio.
Texto Anterior: + Marcelo Gleiser: Independência e inovação Próximo Texto: + Marcelo Leite: Gigantes Índice
|