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UMA POLÍTICA INDUSTRIAL DIGNA DO NOME DEVERIA ELEGER COMO UM ALVO PRIORITÁRIO A FABRICAÇÃO DE MEDICAMENTOS DE ÚLTIMA GERAÇÃO NO BRASIL
A vanguarda improvável
John McConnico-29.ago.2002/Associated Press
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Comprimidos do antiviral AZT, usado contra Aids, fabricados nos Aspen Pharmaceutical Research Laboratories, de Port Elizabeth, África do Sul |
O trem de ferro passa no campo entre telégrafos.
Sem poder fugir sem poder voar sem poder sonhar sem poder ser telégrafo. ("A Moça e o Trem", João Cabral de Melo Neto)
Antonio Oliveira-dos-Santos
especial para a Folha
Na aurora do século 21, a discussão sobre inovação tecnológica permeia o ambiente científico brasileiro, atraindo ao debate as classes
política e empresarial. Contudo, ressente-se a
ausência de política industrial indicando o norte para a
evolução do capitalismo industrial rumo a uma indústria pós-fordista, baseada no uso intensivo de conhecimento científico e de práticas empresariais socialmente
responsáveis, geradoras de bens de impacto sobre a
qualidade de vida.
No atual estágio da economia brasileira, chamar de
"política industrial" a redução de impostos sobre veículos automotores, em períodos de retração da demanda,
e outras ações pontuais do gênero, necessárias em certos momentos do ciclo econômico, constitui atentado
ao intelecto. O horizonte de experiências do indivíduo
delimita seu universo de sonhos. Todavia, sociedades
bem-sucedidas na busca do bem-estar comum fomentam vanguarda capaz de expandir esse universo. O setor de medicamentos, pela importância estratégica, pelo alto valor agregado dos produtos e pela complexidade, é alvo potencial para verdadeira política industrial.
O capitalismo fordista (siderurgia, indústria de máquinas, petroquímica, têxtil, energia), evolução da primeira Revolução Industrial, produziu bens fundamentais ao avanço da qualidade de vida no século 20. Desafia-nos permitir seu acesso à maioria da humanidade
desfavorecida, de modo ecologicamente sustentável.
Contudo, política industrial restrita ao fomento da indústria fordista em ambiente global competitivo não
permitirá à sociedade brasileira acelerar seu desenvolvimento humano no século 21 (salvo desastres, ele continuará aumentando, porém em velocidade decrescente), visto que a produção fordista continua perdendo
valor agregado em face da crescente inserção de países
menos desenvolvidos na economia global. Atualmente,
uma questão política se impõe à sociedade brasileira:
qual a sua inserção no jogo econômico global? Retaguarda fiel, satisfeita em participar do jogo enquanto
culpa adversários pelas próprias derrotas, ou vanguarda herética, capaz de competir, vencer e influir nas regras do jogo?
Olhar para o capitalismo industrial na "Terra Brasilis"
permite identificar uma empresa candidata a exemplo
da economia do conhecimento, competidora global e
vencedora: a Embraer. A Embraer resultou de um projeto de política industrial, ainda que seja um caso singular influenciado por razões nacionalista-militares. Sequer dependeu de vantagens competitivas preexistentes (recursos naturais, cadeia produtiva instalada, engenheiros e cientistas treinados). Ao contrário, o Brasil carecia de qualquer inserção no setor aeroespacial em
1969, mesmo ano da conquista da Lua. Passadas três décadas, o sucesso socioeconômico da Embraer, um projeto herético, é medido em empregos de qualidade,
bens de alto valor agregado, impostos, superávit comercial e independência científico-tecnológica -possível
plataforma para inserção no mercado de satélites.
Pacotes de pílulas e de royalties
No Brasil, a indústria de medicamentos ocupa o nicho global de importadores de insumos, empacotadores de pílulas e exportadores de royalties, a despeito do tamanho do mercado consumidor interno e regional (Mercosul). A empresa produtora de medicamentos genéricos funciona
como reguladora de preços de medicamentos antigos,
cujas patentes expiraram, mas pouco contribui com
pesquisa e desenvolvimento (P&D).
Mundialmente, a geração de novos medicamentos,
mais eficazes e seguros, depende de empresas farmacêuticas e biotecnológicas de alta tecnologia, cujos investimentos em P&D ultrapassam US$ 30 bilhões
anuais. Enquanto não conquista nichos em P&D de
medicamentos, o Brasil alimenta dois cenários de desequilíbrio econômico e médico-social: a) crescente exportação de royalties e lucros e importação de insumos
de alto valor agregado, necessários à manufatura local
de medicamentos; b) negação de acesso a medicamentos mais eficazes para fração crescente da população,
atentando "ad infinitum" contra o direito à saúde.
O primeiro cenário transfere a setores mais competitivos da economia o ônus de equilibrar o déficit de comércio exterior do setor. O segundo mina o processo civilizatório e o projeto democrático brasileiro, ao negar
ferramenta médica necessária à restauração da saúde
de cidadãos a quem a medicina preventiva tenha sido
insuficiente na garantia do direito à saúde.
Na última década, o sistema de pós-graduação brasileiro formou número recorde de cientistas nas diversas
áreas do conhecimento, titulando mais de 6.500 doutores ao ano. Nas ciências biológicas e biomédicas se observa aumento tanto quantitativo quanto qualitativo da
produção científica. Em biotecnologia, fundamental à
indústria de medicamentos, a comunidade acadêmica
demonstra competitividade crescente. Esse caro esforço de produção de conhecimento e formação de cientistas, envolvendo dez anos ou mais por indivíduo, tem
permitido expansão e melhora do ensino superior.
Contudo, a sociedade brasileira necessita ampliar o
retorno desse investimento, fomentando o aumento da
produtividade de sua economia por meio da inserção
de cientistas em atividades de P&D no parque industrial, que será essencial na conquista de novos nichos na
economia do conhecimento, particularmente em setores estratégicos como o de medicamentos.
Política industrial de fomento a P&D de novos medicamentos demandará duas vertentes complementares:
a) criação de condições competitivas, levando empresas
farmacêuticas transnacionais a investirem em P&D no
Brasil; b) liderança pró-ativa dos agentes do Estado, tais
como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social) e Finep (Financiadora de Estudos e
Projetos), levando o capitalismo industrial fordista e investidores institucionais a diversificarem investimentos
em novas empresas ("start-ups") de biotecnologia.
P&D de medicamentos requer escala de investimentos e experiência empresarial e apresenta tempo de maturação longo -mais de dez anos entre descoberta, testes pré-clínicos, manufatura, testes clínicos, aprovação
por agências reguladoras e início da comercialização.
Justamente a escala do investimento e sua longa maturação tornam fundamental a participação do Estado na
coordenação da alocação de recursos da sociedade. No
caso de "start-ups", após período de gestação de alguns
anos, elas teriam o capital aberto (mercado de ações),
permitindo ao Estado e a investidores originais obter
lucros, diluir prejuízos e realocar capital às empresas de
sucesso e novas "start-ups".
A despeito do número crescente de cientistas envolvidos em pesquisa biotecnológica acadêmica no Brasil,
ela difere substancialmente da P&D de medicamentos.
O sucesso da política industrial requer atrair no mercado internacional cientistas e técnicos experimentados,
permitindo aos cientistas locais, egressos da academia,
atingir produtividade equivalente à mundial em tempo
razoável e evitando desperdícios na "reinvenção da roda". A taxa de insucesso do setor de medicamentos, inerentemente elevada (historicamente, menos de 5% das
pesquisas resultam em novo medicamento), torna essa
atividade incompatível com amadorismo.
Atores do debate ecológico sofrem de miopia utópica, defendendo a intocabilidade de ecossistemas, esquecendo que a preservação depende da qualidade de vida.
É necessário tornar a depredação desinteressante
Biodiversidade
O aproveitamento de recursos naturais de modo social e ecologicamente responsável está
na agenda política mundial, graças em parte à formalização do debate mediada pela ONU (Organização das
Nações Unidas) nos anos 1990. Para países com baixo
desenvolvimento humano e ricos em biodiversidade,
como o Brasil, a exploração desses recursos biológicos
tem potencial para melhorar a qualidade de vida da população mundial e de populações locais em particular.
Frequentemente, atores do debate ecológico sofrem
de miopia utópica, defendendo a intocabilidade como
forma preferencial de proteção a ecossistemas ameaçados e esquecendo que a almejada preservação depende
a longo prazo de melhora da qualidade de vida de populações locais. É necessário tornar a depredação ambiental socioeconomicamente desinteressante.
A biodiversidade brasileira tem potencialidade para
fornecer novas moléculas de valor farmacológico, com
a vantagem de ser essa exploração ecologicamente sustentável: em geral, moléculas encontradas na natureza
servem apenas como modelo inicial em P&D de medicamentos, a partir do qual análogos químicos sintéticos
são gerados em laboratório e otimizados, através de
anos de pesquisa, até apresentar características farmacológicas (eficácia e segurança) compatíveis com o uso
terapêutico em seres humanos.
Que dizer da figura hollywoodiana do cientista buscando ervas milagrosas na floresta, a cura do câncer e de
outras doenças? Ficção romântica. Para que a humanidade usufrua de medicamentos derivados da biodiversidade inexplorada no planeta e populações locais ganhem em qualidade de vida de forma suficiente para
permitir a preservação desses ecossistemas, são necessários investimentos altos e profissionais em P&D.
O Brasil possui capacidade instalada em pesquisa acadêmica apta a responder à demanda futura de recursos
humanos, biodiversidade entre as maiores do planeta,
capital industrial e financeiro passível de ser mobilizado
na direção da economia do conhecimento e grande
mercado consumidor de medicamentos interno e regional. Condições mínimas, no aguardo de política industrial agressiva e profissional que viabilize uma indústria de medicamentos baseada em P&D e ocupação
de nichos inexplorados do mercado mundial. A vanguarda é possível, mas não fruto de geração espontânea.
Antonio Oliveira-dos-Santos, 35, cientista do Amgen Cambridge
Research Center (EUA), é médico formado pela UFBA (Universidade
Federal da Bahia), doutor em biologia celular e molecular pela Fiocruz
(Fundação Oswaldo Cruz) e pós-doutorado pela Universidade de Innsbruck (Áustria)
E-mail: Antonioo@Amgen.com
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