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Ciência em Dia
Genes e germes da esperteza
Marcelo Leite
editor de Ciência
Na semana que passou, uma notícia
de grande e longo impacto no mundo da biotecnologia foi ofuscada por outra de efeito mais bombástico, no campo da mudança climática global: o provável
desembarque da Rússia do Protocolo de
Kyoto, o tratado que tenta criar metas de
corte nas emissões, pelo homem, de gases que agravam o efeito estufa.
O rompante anticlimático do Kremlin
contou, porém, com a devida atenção. O
que recebeu menos destaque foi o anúncio feito na Alemanha de que o Escritório
Europeu de Patentes concedeu uma dessas proteções amplas para técnicas de
engenharia genética que fazem ambientalistas e adversários das biotecnologias
subirem nas tamancas.
Na realidade, o anúncio havia sido feito
na semana anterior e passado um tanto
despercebido. A patente fora concedida
à principal instituição de pesquisa alemã,
a Sociedade Max Planck (conhecida pela
abreviação MPG, em alemão), e dava cobertura a um dos procedimentos mais
precisos para modificar genes de plantas,
empregando a Agrobacterium tumefaciens. Ato contínuo, a MPG firmou com
a empresa Bayer CropScience um acordo de licenciamento que dava à companhia exclusividade sobre a tecnologia.
"Tecnologia" é modo de dizer. Embora as principais agências patentárias do
mundo já tenham firmado uma espécie
de jurisprudência sobre a patenteabilidade de mecanismos biológicos e mesmo de microrganismos inteiros, no caso
foi a capacidade natural dessa bactéria
de solo de infectar plantas que ganhou
proteção como propriedade intelectual.
Algo "inventado" pelo germe e apenas
descoberto pelos cientistas da MPG.
Ao infectar plantas, a A. tumefaciens
provoca a multiplicação de células vegetais e o surgimento do tumor conhecido
como galha da coroa (limite entre tronco
e raiz), em cujo interior a bactéria pode
proliferar. O microrganismo enxerta genes nas células do vegetal, que o fazem
produzir as substâncias especificadas
nessas sequências genéticas e indutoras
do tumor. O agente da inserção é um tipo
de DNA circular conhecido como plasmídio Ti (do inglês "tumor-inducing").
Os biotecnólogos nada mais fazem do
que plagiar a esperteza agrobacteriana.
Tomam seu plasmídio Ti, retiram as sequências produtoras da galha e enxertam os genes de seu próprio interesse
(por exemplo, trechos de DNA que ensinem a planta a produzir inseticida em
suas próprias células). O plasmídio vira
uma ferramenta, e é claro que alguém teve a idéia de fazê-lo, mas o busílis, o princípio mesmo de seu funcionamento, não
é uma invenção humana -não mesmo.
A patente conferida à Bayer encerraria
em princípio uma disputa de 20 anos
com a Monsanto, que usa e abusa da A.
tumefaciens e alega ter desenvolvido independentemente sua própria técnica
para criar vegetais transgênicos, como a
polêmica soja resistente a herbicida. Segundo reportagem do jornal norte-americano "St. Louis Post-Dispatch", porém,
a Monsanto -que tem sede no mesmo
Estado de Missouri- entende que o caso não está encerrado. Ao menos nos
EUA, as empresas teriam ainda muitas
batalhas legais pela frente.
Qualquer que seja o resultado, do lado
de cá seria o caso de atentar para duas
questões: se é mesmo aceitável essa interpretação de que um mecanismo biológico pode ser patenteado e se é do interesse de todos que uma tecnologia tão
fundamental (ainda que polêmica) fique
sob o controle de uma única empresa.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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