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MUTAÇÕES GENÉTICAS E TERAPIAS BIOTECNOLÓGICAS AMEAÇAM CRIAR UM NOVO TIPO DE DOPING, QUE AFETA DIRETAMENTE O DNA E NÃO PODE SER DETECTADO POR TESTES EXISTENTES HOJE
ATLETAS TRANSGÊNICOS
Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local
Soja, algodão ou tomate transgênicos já causam um
bocado de discussão. Mosquitos geneticamente
modificados para combater a transmissão de doenças também criam celeuma, apesar de estarem um
pouco mais distantes no horizonte do cientificamente
possível. Os Jogos Olímpicos de Atenas, que começam no
próximo dia 13, acendem uma cizânia nova -quiçá precoce, mas que poderá facilmente eclipsar essas ligadas a
vegetais e pestes vulgares. Descobertas recentes e tratamentos próximos indicam que está raiando a era do atleta
transgênico.
Soja, algodão ou tomate, mesmo da variedade não-transgênica -isto é, com genes adicionados pelo homem-, estão longe de serem plantas "naturais". Essas
culturas foram modificadas por milênios por um processo "artificial" chamado agricultura. Essa seleção de variedades pelo homem produziu frutas e legumes que não
existiam na natureza, bastando mexer na sua "natural"
variedade genética.
Atletas são seres diferentes do resto da humanidade, assim como um tomate vermelho, suculento e enorme hoje
em um supermercado do mundo ocidental difere dos tomates ancestrais plantados pelos astecas no México.
Atletas procuram atingir os limites físicos da espécie,
correndo, nadando e transportando ou arremessando
itens variados, sejam dardos ou pesos de ferro. Para isso,
treinam todo dia, usando suas oito horas de trabalho para
moldar músculos, nervos e reflexos. Alguns acham que o
corpo precisa de ajuda extra e recorrem ao doping, nome
dado a qualquer substância capaz de dar um impulso extra para quebrar um recorde ou vencer uma competição.
Pois por mais que o tal "ideal olímpico" seja competir,
vencer é o que anima esses homens e mulheres diferentes
do resto. A genética promete criar uma bela confusão no
esporte, ao introduzir uma zona cinzenta ética.
Falácia naturalista?
É errado, diz o consenso, usar
uma substância química que modificaria o funcionamento "natural" do corpo humano. Mas seria legítimo usar
um acessório "artificial" -como um maiô revolucionário, que imita os hidrodinâmicos dentículos da pele dos
tubarões e dá uma ligeira vantagem a quem o usa.
Não se trata de uma questão de igualdade, de o jogo começar com os jogadores na mesma condição de competir.
Todos podem teoricamente comprar o tal maiô, assim como todos teoricamente poderiam usar quaisquer substâncias disponíveis no mercado.
Atletas geneticamente modificados para serem mais
fortes ou mais resistentes também não seriam "naturais",
pois não nasceram assim. Mas também não seriam "artificiais", pois o material genético agregado existe na natureza. Mais ainda: nem teriam como ser identificados em testes de doping, pois suas alterações não seriam detectáveis
em exames de sangue ou de urina.
O melhor exemplo dessa "zona cinzenta" vem de um caso perfeitamente "natural", lembrado por um pesquisador que trabalha com a genética dos músculos, H. Lee
Sweeney, da Universidade da Pensilvânia (EUA). Em artigo na revista "Scientific American", também traduzido na
edição brasileira da revista, Sweeney lembra o caso do esquiador finlandês Eero Mäntyranta, que conquistou duas
medalhas de ouro na Olimpíada de 1964.
"Mas foi só décadas mais tarde que cientistas finlandeses
identificaram uma mutação, presente em toda a família de
Mäntyranta, que provoca uma resposta exagerada à eritropoietina, gerando um número excepcionalmente alto
de glóbulos vermelhos. Vários membros da família também eram campeões em esportes de resistência", afirma
Sweeney.
A resistência é fundamental em boa parte dos esportes
olímpicos, e ela depende da capacidade de os músculos receberem uma carga constante oxigênio do sangue através
dos glóbulos vermelhos. O hormônio eritropoietina estimula a produção dessas células vermelhas do sangue.
Mäntyranta, portanto, tem o que se poderia descrever como uma dopagem genética natural.
É justo que ele esteja competindo com essa vantagem
natural? E se um atleta usar uma versão sintética da eritropoietina para melhorar a produção de glóbulos vermelhos, como vários atletas já fizeram e confessaram? Indo
mais longe, e se um atleta optar por introduzir em seu organismo um gene ligado à produção extra de eritropoietina -como o que existe em Mäntyranta?
Mutante
Ficando ainda no terreno do "natural", existe
um outro caso que assusta as entidades ligadas ao controle
do doping e deixa inquietos os admiradores românticos
dos esportes -aqueles que ainda acham que os Jogos
promovem o esporte dito amador em contrapartida ao
"profissional". Deu no "The New England Journal of Medicine" (www.nejm.org), uma das mais importantes revistas de medicina do terceiro planeta girando em torno
do Sol: descobriu-se uma criança com músculos muito
acima do normal devido a uma mutação genética.
A mutação envolve o gene da miostatina, uma substância que atua regulando a massa muscular. Sem miostatina,
camundongos se tornaram bichos fortões e musculosos.
Notou-se que o bebê já tinha nascido com músculos hipertrofiados. A alteração genética descoberta envolve a redução da produção de miostatina. Hoje com quatro anos
de idade, o garoto continua bem mais forte do que seria
normal. Sua mãe foi atleta profissional.
O garoto poderia facilmente se tornar um bom atleta, começando com essa vantagem natural. Discutindo a descoberta, a médica Elizabeth McNally, da Universidade de
Chicago, também nos EUA, lembra um outro dilema ético
potencial: a identificação de mutações genéticas ligadas à
miostatina pode servir como um teste para identificar atletas em potencial.
Ela lembra que um atleta bem-sucedido depende tanto
da sua natureza como do ambiente em que treina. Mas ela
lembra: "Atletas profissionais de segunda e terceira gerações não são algo fora do comum e podem dever suas
proezas em parte à seleção natural para variantes de genes
como o da miostatina, que conferem uma predisposição
para capacidade atlética realçada".
A pesquisa com miostatina poderia ser mais facilmente
criticada se sua única função fosse melhorar a vida dos
atletas. Na verdade, o interesse dos cientistas nessa substância reguladora dos músculos está ligado ao combate a
doenças degenerativas, como as distrofias musculares.
"O bloqueio da miostatina poderá ser útil no tratamento
de estados degenerativos musculares mais comuns, como
os que ocorrem com o envelhecimento", diz a médica.
Há quem diga que atletas transgênicos já estarão nesta
Olimpíada, em Atenas. É o caso de Andy Miah, pesquisador britânico e autor do livro "Genetically Modified Athletes" ("Atletas Geneticamente Modificados", em inglês,
ainda sem tradução no Brasil). Miah acha que o atleta
transgênico não é algo negativo.
"A idéia de um atleta naturalmente perfeito é bobagem
romântica. Um atleta consegue o que consegue utilizando
todo tipo de meio -tecnologia, patrocínio e por aí vai.
Utilizar a modificação genética é meramente uma continuação do modo como o esporte funciona, ela nos permite
criar desempenhos mais extraordinários", declarou Miah,
numa entrevista recente à imprensa britânica.
Mas essa opinião promete permanecer isolada por algum tempo. A Wada, sigla em inglês para Associação
Mundial Antidoping, já está estudando meios de combater
a dopagem genética. Como a associação vai fazer isso ainda é um enigma.
"Nós somos todos transgênicos", disse certa vez um dos
mais importantes geneticistas brasileiros, Francisco Mauro Salzano, do Instituto de Biociências da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), lembrando que do
material genético de um ser humano constam pedaços que
vieram de outros seres vivos. Convém lembrar que aquilo
que pode parecer "artificial" pode ser, no fundo, uma
ocorrência natural. O finlandês Mäntyranta que o diga.
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