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Ciência em dia
Francis Harry Compton Crick, 1916-2004
Marcelo Leite
colunista da Folha
A notícia da morte de Francis H.C.
Crick circulou quando a coluna da semana passada já estava indo para o prelo, e
foi essa a única razão da demora no comentário -mas nem sempre atrasos têm
conseqüências funestas. No caso, ele permite que se corrijam muita bobagem e várias omissões cometidas no dilatado obituário sobre o britânico.
Se pudesse ler o que sobre ele se escreveu,
Crick arquearia as impressionantes sobrancelhas brancas e principiaria, fleumaticamente, por desdenhar o qualificativo
de herói da ciência. Nada poderia destoar
mais de sua figura metódica, que como
poucos viveu a pesquisa tecnocientífica como empreendimento coletivo. Até a contribuição de James Dewey Watson na reconstituição da estrutura molecular do ácido desoxirribonucléico (DNA) em 1953
houve quem buscasse diminuir, coisa que
o próprio Crick nunca tentou.
Sem o arrojo do jovem colega norte-americano no laboratório Cavendish, em
Cambridge (Reino Unido), Crick nunca teria chegado à estrutura em dupla hélice. A
recíproca também é verdadeira. Mas foi
Watson quem resolveu a última peça do
quebra-cabeças, na qual reside também o
cerne replicador da molécula elegante: os
pares específicos de bases nitrogenadas
que formam os degraus da escada em espiral, adenina sempre com timina e citosina
sempre com guanina. Isso para não mencionar a célebre e crucial imagem cristalográfica do DNA produzida por Rosalind
Franklin, a que só Watson obteve acesso.
A contribuição fundamental de Crick para adivinhar a estrutura correta, além do rigor dedutivo que faltava a Watson, foram
as idéias de que as hélices deveriam ficar do
lado de fora da molécula e que se orientavam em sentidos opostos, como dois trens
que se cruzam numa linha férrea. Quase
ninguém anotou isso nos obituários. Tampouco se destacou aquele que talvez tenha
sido o lance mais genial de Crick: a hipótese do adaptador. Em 1955, ele formulou a
idéia visionária de que os ácidos nucléicos
DNA e RNA não poderiam servir diretamente de molde para enfileirar os aminoácidos que constituem as proteínas, necessitando para isso de alguma molécula adaptadora (depois identificada como o RNA
de transferência).
Mais enviesada ainda é a genealogia direta que se estabelece entre a estrutura proposta em 1953 e a engenharia genética que
hoje inquieta o imaginário social. É uma
mistificação que escamoteia o caráter incremental da atividade científica, mesmo
quando dirigida pelos egos dilatados da
biologia molecular. Watson e Crick nunca
teriam dedicado sua atenção ao DNA se o
canadense Oswald Theodore Avery (1877-1955) não tivesse demonstrado, em 1944,
que esse ácido era o portador da mensagem hereditária. Mais omissões: Erwin
Chargaff (1905-2002) e Marshall Warren
Nirenberg (1927- ).
Além disso, conhecer a estrutura do
DNA está muito longe de ser capaz de manipulá-lo -a 20 anos de distância, para falar a verdade. Sem Stanley Cohen e Herbert
Boyer, que conseguiram mobilizar enzimas de restrição para recombinar (remontar) pedaços de DNA, avenida alguma conduziria de Watson e Crick ao Projeto Genoma Humano e à soja transgênica.
Por falar nisso, o que a dupla hélice tem a
ver com Dolly e com células-tronco, como
se propalou? Nada. É biologia celular, não
necessariamente molecular.
Crick não foi um herói. Talvez tenha sido
um gigante. E é só porque estamos sobre
seus ombros que não nos damos conta de
nossa ínfima estatura.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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