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Micro/Macro
Repensando o nada: uma deconstrução da matéria
Marcelo Gleiser
colunista da Folha
Como definir o nada? Segundo o "Aurélio", nada significa "nenhuma coisa",
"de modo algum", ou "a não-existência".
Aparentemente, é tudo muito simples: o
nada é a ausência de algum objeto material, de alguma "coisa". Ou, puxando para
o lado da metafísica, o nada é a não-existência, o não-ser. Portanto, o nada pode ser
igualado à ausência de coisa material ou
existência. Ao vazio, físico ou metafísico.
Uma vez definido o nada, a próxima
questão é, naturalmente: "Será que o nada
existe?" Será possível que um determinado
volume do espaço seja completamente vazio de coisas ou de ser? Até o início do século 20, a resposta, baseada no que chamamos de física clássica, seria: "Sim, em princípio é possível selar um determinado volume, por exemplo, uma garrafa inquebrável, e usar uma bomba de vácuo para sugar
o ar e outras substâncias em seu interior
até que toda a matéria tenha sido expelida.
O que resta é apenas espaço vazio, o nada".
Veja que, mesmo aqui, no mundo clássico, existem duas suposições essenciais para que o vazio seja criado: primeiro, a garrafa ou volume que o contém tem de ser inquebrável. Caso contrário, a bomba de vácuo causaria a sua implosão. Segundo, a
bomba de vácuo tem de ser perfeita, capaz
de sugar toda a matéria, todos os átomos
do que quer que esteja na garrafa. Como
garrafas inquebráveis ou bombas de vácuo
com eficiência perfeita não existem, atingir
o nada, mesmo no mundo clássico, é, na
prática, impossível. O que é factível é atingir um nada aproximado, um volume tão
destituído de matéria que, para fins experimentais, podemos chamá-lo de nada. Pelo
menos para fins experimentais que não envolvam efeitos atômicos.
Ao descermos à escala dos átomos, as
coisas tornam-se bem mais sutis. Um dos
resultados mais importantes da física
quântica, a física que estuda o mundo dos
átomos e das partículas subatômicas, é
que, na natureza, nada está em repouso absoluto. Imagino o leitor mais cético dizendo que isto é besteira, que se você deixar
um vaso sobre uma mesa ele ficará lá, sem
se mexer até o fim dos tempos. É verdade
que o vaso inteiro estará lá, aparentemente
imóvel. Mas, se pudéssemos olhá-lo com
lentes especiais, capazes de revelar distâncias de centésimos de milionésimos de
centímetro, veríamos uma realidade muito
diferente: átomos ligados a átomos por forças elétricas, vibrando como gelatina; elétrons escapando e voltando a eles, mudando de posição constantemente, interagindo com partículas de luz. O que chamamos
de vaso passa a ser um conjunto de vibrações materiais, ondulações que respondem à radiação eletromagnética (as partículas de luz e outras radiações, como infravermelho e ultravioleta).
O mundo quântico é caraterizado pela
ausência de permanência: há uma agitação
perene, incessante. A rigidez material familiar é uma ilusão causada pela nossa percepção macroscópica da realidade.
Na escala quântica o nada não existe,
nem mesmo como suposição. A agitação
das partículas de matéria redefine a energia de um sistema físico. Se, no mundo macroscópico, um vaso imóvel sobre uma
mesa pode ser definido como tendo energia zero (para os leitores mais técnicos, tomamos a mesa como o zero de energia potencial gravitacional), na escala quântica a
vibração constante de seus átomos torna
isso impossível. Existirá sempre uma agitação residual, com uma energia associada.
E o que isso tem a ver com o nada? Lembrem-se da relação E=mc2, que diz que matéria e energia, sob certas condições, são interconversíveis. Tomemos então um espaço sem matéria, "vazio". A física quântica
mostra que, mesmo neste caso, flutuações
de energia existem. O nada tem uma energia associada. Sendo assim, partículas podem surgir dessas flutuações, matéria brotando do nada.
Em 1948, H. Casimir, um físico holandês,
propôs que as flutuações do vácuo provocariam uma força atrativa entre duas placas metálicas. O efeito foi confirmado: por
incrível que pareça, a energia do nada foi
medida recentemente em laboratório. O
vazio está cheio de energia.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"O Fim da Terra e do Céu"
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