|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
George, Charles e os transgênicos
Marcelo Leite
editor de Ciência
Nem senhor da guerra, nem príncipe
da precaução. Já passou da hora de
a opinião pública rejeitar as dicotomias
empobrecedoras e aprofundar-se na discussão sobre os organismos geneticamente modificados (OGMs), para enfim
decidir se quer essa tecnologia, como e
sob quais condições. Caso contrário, ficará indefinidamente refém dos fundamentalismos estéreis.
Começando pela mais recente onda de
pânico do príncipe Charles, com a nanotecnologia e sua ameaça de engolfar o
planeta com uma "meleca cinza" ("gray
goo"), legião de nanorrobôs auto-replicantes descontrolados. Ela só vem ao caso porque é mais uma, e muito representativa, da sucessão de paranóias que acometeu o público no Reino Unido.
Vista desse ângulo, a desconfiança nada tem de irracional, como tentam rotular os adeptos fundamentalistas dos
OGMs. Parece lógico recusar produtos
que envolvam riscos desconhecidos,
mesmo que infinitesimais, se o benefício
tampouco é visível.
Racional ou não, fato é que esse temor
difuso diante da engenharia genética,
aplicada à agricultura, foi astutamente
explorado pelos adversários dos OGMs.
Assim como seus oponentes corporativos, muitos desses militantes da esfera
alternativo-ambientalista apostam mais
na confusão do que no esclarecimento
para barrar a tecnologia que abominam.
Pode ser chamada de fundamentalista,
por exemplo, a noção de que há algo de
errado com a própria engenharia genética. Ela resulta em produtos muito díspares, como a soja resistente a herbicida e o
milho resistente a insetos. Só a ignorância pode tentar enfiá-los no mesmo saco.
O mero pânico diante da palavra
"transgênico" é tão pouco esclarecido e
esclarecedor quanto passar da comoção
individual à ação pública tentando banir
toda e qualquer pesquisa. Seria erro tão
grave quanto dificultar, por exemplo na
Embrapa, a pesquisa com melhoramento tradicional ou agricultura orgânica só
porque sua direção é favorável a OGMs.
Pior que isso, só mesmo invadir e queimar instalações de pesquisa licenciadas,
como fizeram militantes do MST em
propriedade da Monsanto em Ponta
Grossa, no Paraná. Ou, então, extrapolar
os limites da atividade licenciada por comitês de biossegurança e multiplicar sementes de transgênicos, ou tolerar o contrabando de sementes da Argentina, só
porque a aprovação dos OGMs é dada
como favas contadas ou postulada como
passo necessário na marcha inexorável
do progresso científico.
Para criar normas racionais baseadas
em fatos, e não em lendas e paranóias de
qualquer matiz, existem ou deveriam
existir autoridades. Em lugar de usurpar
o poder de polícia e meter-se a exercê-lo
com as próprias mãos, inimigos dos
OGMs devem assumir o ônus de documentar suas objeções, como faz no Reino Unido, por exemplo, o grupo liderado por Mae-Wan Ho (www.i-sis.org.uk)
de adversários dos OGMs.
Pode ser que desse tipo de iniciativa
surja algum terreno comum, em que um
debate de fato se instale. No Brasil, porém, essa possibilidade parece cada vez
mais uma miragem. Predominam as "razões" de força, e nessa matéria há argumentadores muito mais poderosos, como George W. Bush. Não faz muito ele
preveniu a Europa de que ela deveria desistir da obstrução "anticientífica" ao comércio de transgênicos, pois isso estaria
levando países pobres a recusá-los e prejudicando o combate à fome na África.
Um argumento literalmente irresistível, ainda que mistificador.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro: Cozinhando a sopa primordial Índice
|