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Micro/Macro
Samba do neutrino doido
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
O Carnaval está chegando, e os vários
blocos e escolas estão acertando os
últimos detalhes, sincronizando a bateria, apertando as fantasias, colando mais
penas nos chapéus, encolhendo alguns
milímetros a mais nos biquínis, reescrevendo trechos do samba-enredo. E, no
meio do calor e da euforia crescente, os
estranhos neutrinos continuam chovendo sobre a Terra, passando por tudo e todos, quase como fantasmas.
O samba dos neutrinos não tem enredo, só energia. Agora mesmo, o leitor está sendo atravessado por trilhões deles
por segundo. Mas não se sinta violado.
Como já diz o nome ("o pequeno nêutron", claro que dado por um italiano, no
caso Enrico Fermi), neutrinos são partículas praticamente inertes, sem carga e
com massa extremamente pequena.
Aliás, até pouco tempo atrás, achava-se
que nem massa eles tinham.
Quando o alemão Wolfgang Pauli propôs a existência do neutrino em 1930,
ninguém deu muita bola. A partícula
nasceu de parto induzido, para garantir
uma das leis mais sacrossantas da física,
a lei de conservação da energia. Energia
pode se transformar, mas não ser criada.
Portanto, um evento envolvendo a colisão de partículas subatômicas como elétrons e prótons tem de ter a mesma energia antes e depois. Mas quando um nêutron se desintegrava em um próton e um
elétron (um nêutron isolado é uma partícula instável), ficava faltando energia.
Pauli sugeriu que essa energia estava
sendo carregada por uma nova partícula,
o neutrino. Apenas em 1956 a sua existência foi confirmada. A dificuldade em
achar o neutrino vem justamente da sua
inabilidade de interagir com partículas
de matéria. Eles podem atravessar a Terra inteira sem colidir uma única vez. Daí
a sua reputação de partículas-fantasma.
Hoje, sabemos que existem ao menos
três neutrinos, cada um associado à uma
partícula diferente: o neutrino do elétron, o do múon e o do tau, descoberto
há três anos. As partículas múon e tau
são primos mais pesados do elétron,
com a mesma carga elétrica. Neutrinos
são forjados no centro de estrelas como o
Sol, em desintegrações de núcleos radioativos e em raios cósmicos, quando
prótons produzidos em diferentes regiões do espaço colidem com as moléculas de ar na atmosfera.
Aparentemente, os três tipos de neutrinos podem se metamorfosear entre si,
trocando de identidade; o do elétron pode virar o do múon ou o do tau etc. Isso
só pode ocorrer se eles de fato têm massa. É um fenômeno parecido com o que
ocorre nas cores, que podem ser produzidas a partir de combinações do verde,
vermelho e azul com diferentes pesos.
Imagine então o neutrino como sendo
uma combinação dos três tipos fundamentais, pulando de um para outro durante sua viagem pelo espaço. Esse é o
samba do neutrino doido.
Em 1995, a coisa ficou mais complicada. Um experimento no laboratório de
Los Alamos, nos EUA, indicou a possível
existência de um quarto neutrino, chamado de "neutrino estéril". Se os outros
neutrinos são difíceis de serem descobertos com a ajuda de suas interações
com a matéria (e esse é o único de jeito de
comprovar a sua existência), o neutrino
estéril é muito mais. A maioria dos físicos acha que o experimento de Los Alamos está errado. Eles não viram o novo
neutrino, mas inferiram a sua presença
indiretamente, mostrando que existem
três intervalos de massa entre os vários
tipos de neutrino, e não dois. Do mesmo
jeito que existem três espaços entre quatro dedos da sua mão, se existem três espaços entre as massas dos diferentes
neutrinos, é porque existem quatro deles. Se isso for verdade, várias teorias terão de ser recalibradas, desde as que ditam como entendemos a geração de
energia em estrelas até as que descrevem
as partículas fundamentais da matéria e
a expansão do Universo.
Um experimento no Fermilab, perto
de Chicago (Illinois, EUA), irá caçar os
neutrinos estéreis, produzindo um feixe
de neutrinos e usando 800 toneladas de
óleo Johnson como alvo. Os neutrinos
colidem com os átomos de carbono do
óleo, produzindo elétrons e múons, que
são detectados. Da razão entre o número
de elétrons e múons é possível inferir se
existem quatro ou três neutrinos. A análise dos resultados levará anos. Nesse
meio tempo, os neutrinos continuarão
sambando pelo Universo, seguindo um
enredo que só eles sabem.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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