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Ciência em Dia
Questão de genes e princípios
Marcelo Leite
editor de Ciência
Existem duas maneiras principais de
enfrentar e tentar resolver o dilema
ético envolvido na concessão de patentes
-direitos de propriedade- sobre genes humanos. A primeira se baseia em
princípios e almeja resolver o dilema de
maneira independente dos casos concretos. A outra deixa de lado a generalidade
dos princípios e busca solucionar a questão em termos pragmáticos, aquilatando
prós e contras de situações concretas.
Para tornar a coisa um pouco menos
abstrata, considere-se o exemplo de uma
patente obtida pela Myriad Genetics (de
Salt Lake City, Utah, EUA). A proteção
foi dada para trechos dos genes BRCA1 e
BRCA2, ligados a cânceres de mama.
O caso é complicado, em primeiro lugar, porque a empresa não detém direitos sobre a totalidade da sequência dos
dois genes. Depois, porque os trechos
protegidos não são as versões mais comuns, "normais", dos genes, mas sequências com mutações que aumentam
a probabilidade de uma mulher desenvolver tumores mamários e ovarianos.
Além disso, a patente cobre seu emprego
em testes diagnósticos, como o que a
Myriad comercializa por US$ 2.300.
Embora a presença das mutações numa mulher não a leve inevitavelmente a
desenvolver tumores, um estudo na respeitada revista médica norte-americana
"The New England Journal of Medicine"
indica que, se as mutações forem diagnosticadas em mulheres que já têm filhos
e seus ovários forem extraídos, desaparece o risco aumentado de tumor ovariano
e cai 53% o de tumor mamário.
Do ponto de vista exclusivo dos princípios, a patente de genes é problemática,
mesmo dentro dos parâmetros da propriedade intelectual. Isso porque é consenso internacional, há décadas, que esse
tipo de proteção só deve ser concedido
quando estiverem envolvidos ineditismo, invenção e utilidade.
O argumento tradicional é que um gene é algo dado na natureza, assim como
qualquer elemento químico (oxigênio,
por exemplo). Pode-se descrever pela
primeira vez um gene ou um elemento, e
até mesmo indicar sua utilidade (como
num teste de diagnóstico genético ou
num processo industrial), mas só uma
lógica distorcida poderia fazer passar tal
descrição como invenção. O fato de serem genes mutados raros, e não suas
ocorrências "naturais", não muda o fato
de que eles são "inventados" pela própria natureza (ainda que pelo acaso).
Distorcida ou não, é essa a lógica que
tem prevalecido no país da Myriad e do
pragmatismo, os EUA (a legislação brasileira, de seu lado, proíbe esse tipo de
proteção). A racionalidade por trás da
concessão de patentes para genes desse
tipo, mesmo em contradição substancial
com o princípio da invenção, decorre do
seguinte raciocínio: o que se patenteia
não é a matéria do gene, mas sua informação, fruto de atividade humana criativa; mais ainda, sem o incentivo econômico da patente, empresas como a
Myriad não investiriam milhões para
identificar as mutações e criar testes.
É um ponto de vista discutível, ainda
que respeitável. Dispostos a discuti-lo e
também a desrespeitá-lo estão vários
hospitais da Europa e a Província de Ontário, no Canadá, que desenvolveram
seus próprios testes baseados nas mesmas sequências "possuídas" pela Myriad
e estão defendendo nos tribunais seu direito de fazê-lo.
Como se vê, nem mesmo o pragmatismo pode resolver sem conflitos questões
que, no fundo, são mesmo de princípio.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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