|
Próximo Texto | Índice
+ ciência
COMO ENFRENTAR A MATRIX
Divulgação
|
O personagem Neo (Keanu Reeves) chega à Cidade das Máquinas, no filme "Matrix Revolutions" |
Duas coletâneas de ensaios lançadas recentemente no Brasil esmiúçam as camadas de referências no filme inaugural da trilogia sobre o 'real'
|
Salvador Nogueira
da Reportagem Local
O que é a Matrix? A pergunta que assolou Neo
em sua busca pela verdade na trilogia cinematográfica concebida e dirigida pelos irmãos
Wachowski é tema de dois livros recentemente publicados no Brasil. Mas ninguém imagine que isso
é sinal indubitável da propalada profundidade filosófica dos filmes da série.
Bem-vindo à indústria do entretenimento, a fábrica
da fantasias hollywoodiana. Não é de hoje que obras cinematográficas e televisivas -sobretudo de ficção
científica- motivam a produção de merchandising supostamente cultural a seu respeito. A série "Jornada nas
Estrelas", por exemplo, já foi alvo de vários livros retratando os aspectos físicos, biológicos e metafísicos abordados no programa.
O mesmo aconteceu com "Arquivo X". O maior clássico da ficção científica no cinema, "2001: Uma Odisséia
no Espaço", tem até um volume da coleção "Folha Explica" dedicado a ele. E houve até mesmo gente com coragem para abordar a "ciência" de "Guerra nas Estrelas", se é que algo assim possa existir. Não vale, portanto, julgar apressadamente o significado da chegada de
"Matrix - Bem-Vindo ao Deserto do Real" e de "A Pílula
Vermelha" ao mercado editorial brasileiro. O organizador da primeira, William Irwin, por exemplo, tem uma
ampla carreira nesse filão: ele já escreveu sobre a filosofia de "Seinfeld" e "Simpsons".
Uma diferença significativa entre o que se costuma
ver em livros sobre produtos de cinema e TV e os agora
publicados sobre "Matrix" é a ausência de um autor
único. Nas duas novas obras, trata-se de coletâneas de
artigos produzidos por várias pessoas, sobre temas em
princípio diferentes. Supostamente adotada para ampliar os horizontes e cobrir o maior número de temas
possivelmente relacionados com a obra dos irmãos
Wachowski, a estratégia acaba produzindo mais defeitos do que qualidades.
Especialmente em "Bem-vindo ao Deserto do Real", a
sucessão dos capítulos produz no leitor uma forte sensação de "déjà-vu", ou melhor, "déjà-lu". Aliás, um
conselho: ao pegar o livro, pule diretamente para a página 37 -onde começa o conteúdo traduzido da edição
americana. Antes disso, há dois artigos "introdutórios"
à edição nacional que se preocupam basicamente em
fazer doutrinação religiosa usando o filme como veículo, além de comentar alguns aspectos da "sabedoria antiga", inclusive citando os veneráveis habitantes de
Atlântida.
Felizmente o eco interno dos livros (que certamente
fará com que o leitor decore, involuntariamente, várias
das passagens do roteiro do filme) não se reproduz
quando se colocam as duas obras lado a lado. As linhas
das duas publicações fazem surgir lampejos diferentes
acerca do filme. Nos dois casos, os livros falam apenas
do primeiro item da trilogia, mas se mostram muito valiosos para captar com clareza a linha seguida pelos Wachowski até a conclusão da saga de Neo, Morpheus e
Trinity, com o recém-lançado "Matrix Revolutions".
Pode-se dizer que os temas de "Matrix" se dividem
basicamente em vertentes filosóficas, religiosas e tecnológicas -embora apareçam mesclados nos três filmes.
O que os dois livros fazem é justamente desconstruir
essa soma vetorial apresentada no filme em seus elementos fundamentais. Na maior parte do tempo, os
dois livros apresentam conteúdo complementar. "A Pílula Vermelha", organizado por Glenn Yeffeth, é especialmente feliz ao destacar as analogias feitas aos simulacros do mundo real de Jean Baudrillard. Já "Bem-Vindo..." se concentra, como o próprio Irwin confessa, nos
temas de um "curso básico de filosofia", ancorando a
maior parte de suas análises nos batidos mas indispensáveis Platão e Descartes. Na hora de apresentar o filme
no contexto da ficção científica, os ensaios de "A Pílula
Vermelha" são mais eficazes. Já os de "Bem-Vindo..."
mostram de modo mais efetivo a sobreposição dos possíveis "gêneros" que uma produção de cinema pode ter.
Os dois livros abordam os temas religiosos do filme
com dinâmica similar. "A Pílula Vermelha" apresenta
de forma mais destacada os paralelos com a mitologia
cristã de messianismo e salvação. "Bem-Vindo..." dá
ênfase ao lado oriental da obra dos Wachowski, com
paralelos no budismo. Seja qual for o ângulo, todos concordam que a violência do filme reduziu a força dos paralelos religiosos. Curiosamente, salta aos olhos em
"Matrix Revolutions" a opção pela vertente religiosa do
filme, em detrimento das premissas tecnológicas e filosóficas. Lá, Neo é praticamente crucificado, e o roteiro
negligencia as raízes enquanto ficção científica sólida.
Gosma cinzenta
É justamente esse traço, tão presente no primeiro filme e ausente dos demais, que faz de "A
Pílula Vermelha" um livro que realmente vale a pena
ler. Tecnólogos prestigiados apresentam nele seus temores e suas estimativas para o futuro das ciências da
informação, oferecendo respaldo ao alerta apregoado
pelo conceito da Matrix -a revolta de máquinas inteligentes contra a opressão humana. Bill Joy, diretor da
Sun Microsystems, apresenta seus temores sobre o desenvolvimento de dispositivos nanotecnológicos replicantes que poderiam acabar com a vida na Terra, substituindo-a pela "grey goo" (gosma cinzenta). Já o inventor Ray Kurzweil fala da evolução da inteligência artificial como algo inevitável e, mais surpreendente, benéfico. Esse tipo de reflexão está notadamente ausente em
"Bem-Vindo...".
Se for para destacar algo do livro de Irwin, seriam as
abordagens pouco ortodoxas (para dizer o mínimo) da
filósofa feminista Cynthia Freeland, que discute o uso
da "penetração" em "Matrix" e suas conotações nos
mais variados níveis, para defender a hipótese de que o
filme é machista. Também é curiosa a visão de Martin
A. Danahay e David Rieder, que vêem no filme forte traço marxista. Esses artigos, ainda que nas entrelinhas, só
servem para provar o quão profundamente "Matrix"
conseguiu mexer com os arquétipos -as pessoas vêem
no filme o que querem ver, a despeito do que ele de fato
contém. Imaginação sobrepuja realidade.
A pergunta que fica sem resposta nos dois livros é justamente a mais importante. "Matrix" é ou não um filme
com conteúdo? Há os que defendam, os que critiquem,
mas poucos de fato contextualizam: "Matrix" é um filme e precisa ser visto, antes de mais nada, como uma
obra de cinema. Quem quer ver no filme um tratado sobre Baudrillard, uma reflexão dos anseios feministas,
ou mesmo uma análise cientificamente correta do futuro da tecnologia está exigindo algo que o filme não se
propõe a fazer. Como boa ficção científica, ele traz
idéias para que outros reflitam e aí sim as apresentem
num contexto acadêmico. Aos que pensam diferente,
vale a pena relembrar o que disse certa vez o ator William Shatner, intérprete do capitão Kirk de "Jornada
nas Estrelas", num quadro do programa "Saturday
Night Live": "É apenas uma série de TV! Sai dessa vida!"
A Pílula Vermelha
de Glenn Yeffeth (org.)
286 págs. R$ 34,00
Publifolha (tel.: 0/xx/11/3224-2196).
Matrix - Bem-Vindo ao Deserto do Real
de William Irwin (org.)
296 págs. R$ 29,90
Madras Editora (tel.: 0/xx/11/6959-1127).
Próximo Texto: Lançamentos Índice
|