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Micro/Macro
Tempo, vida e entropia
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
O grande astrofísico britânico Arthur
Eddington uma vez proclamou: "Se
a sua teoria contrariar alguma lei da física tudo bem, é possível que a lei deva ser modificada. Mas se essa lei for a segunda
lei da termodinâmica, pode jogar a sua
teoria no lixo". A segunda lei da termodinâmica é, talvez, a lei natural mais fascinante. Em sua versão mais simples, proposta no século 19 por um médico alemão chamado Rudolf Clausius e pelo físico inglês Lord Kelvin, ela afirma que o calor sempre flui de um corpo quente para um corpo mais frio. "Que lei mais óbvia", imagino que você esteja pensando.
É, nessa versão, ela é óbvia mesmo.
Mas, por trás do óbvio, está escondido o
mistério da passagem do tempo, do porquê da desordem tender sempre a crescer enquanto a ordem sempre decrescer,
do porquê de nós envelhecermos e várias
outras questões fundamentais sobre o
mundo e nossas vidas.
Vamos por partes, começando com fatos que são familiares para todo mundo.
Quando você põe um cubo de açúcar no
café, o cubo dissolve. Uma vez dissolvido, você não verá os grãos de açúcar voltarem a formar o cubo. Se você abrir uma
garrafa de perfume em um quarto fechado, você sentirá o cheiro agradável se espalhando pelo quarto. Isso ocorre por
que as moléculas de perfume chocam-se
entre si, escapando da garrafa, e, aos
poucos, vão se chocando também com
as moléculas de ar no quarto, e o perfume vai se difundindo. Você não verá o
aroma agradável desaparecer devido ao
fato de todas as moléculas espontaneamente terem resolvido voltar para a garrafa.
Mais um exemplo: você quebra um
ovo e prepara uma omelete. Jamais você
verá a omelete se transformar de volta
em um ovo. Todos esses processos mostram que existe uma direção preferencial
para a passagem do tempo. Se você visse
uma omelete se transformando em um
ovo, você imediatamente concluiria, por
mais estranho que fosse, que o tempo estaria andando para trás.
Os exemplos acima têm um aspecto
em comum: todos eles começam em um
estado organizado (o cubo de açúcar, a
garrafa com o perfume dentro, o ovo) e
terminam num estado muito mais desorganizado (o cubo dissolvido, o perfume espalhado, a omelete). Esse aumento
inevitável da desordem não é uma propriedade exclusiva de cubos de açúcar,
garrafas de perfume ou ovos. Ele ocorre
com todos os sistemas que não trocam
energia com o exterior. (No caso do ovo,
o sistema tem de incluir a panela e a colher que bate o ovo e, se você quiser, o calor do fogão e a energia que você gasta.)
A quantidade de desordem de um sistema é representada pela sua entropia:
quanto mais organizado o sistema, menor é a sua entropia. O cubo e a xícara de
café do exemplo acima têm entropia menor do que os grãos de açúcar espalhados por todo o volume do café. Esse crescimento da entropia é outra expressão
da segunda lei da termodinâmica: em
um sistema isolado (que não troca energia com o exterior), a entropia nunca decresce, podendo apenas crescer ou permanecer constante.
E, como a segunda lei também está relacionada com a direção da passagem do
tempo, podemos dizer que o tempo vai
para frente porque a entropia cresce.
Não existe escapatória: um sistema deixado aos seus afazeres irá sempre ficar
mais desorganizado (e, consequentemente, mais "velho"). O que seria de sua
casa se você nunca a limpasse?
Sempre que discuto a segunda lei, as
pessoas me perguntam se ela não contradiz a teoria da evolução. Afinal, segundo
essa teoria, a vida na Terra começou com
seres unicelulares bastante simples e,
com o passar do tempo, foi ficando cada
vez mais complexa, cada vez mais organizada. Nós somos seres complicados,
com um grau de organização celular
muito maior do que aquele de uma ameba ou de um simples vírus. Como foi
possível que formas altamente organizadas se desenvolvessem em meio a esse
aumento de entropia?
A resposta se encontra na formulação
da segunda lei. Conforme expliquei acima, ela diz respeito a sistemas isolados,
que não trocam energia e informação
com o exterior. E esse não é, certamente,
o caso dos seres vivos. Qualquer animal
depende de um influxo constante de
energia e de alimentação para viver. A vida não é possível para um ser que exista
completamente isolado dos outros animais e do mundo. Ela só é possível quando existe um decréscimo local de entropia, um aumento local de ordem. Mas,
quando consideramos as fontes de energia (o Sol, os alimentos), a entropia total
sempre cresce. E o tempo, para o cosmo
como um todo, continua sempre marchando avante, indiferente às nossas inquietações existenciais.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos),
e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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