São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004 |
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Ciência em Dia Genes públicos e privados
Marcelo Leite
Provavelmente eclipsada pela notícia
sobre a obtenção de células-tronco
do primeiro embrião humano clonado,
na Coréia do Sul, passou despercebida
há 11 dias uma outra boa nova no campo
das biotecnologias. No dia 11 passado, o
Escritório Europeu de Patentes conferiu
uma patente generosa sobre o gene humano BRCA2, associado com câncer de
mama ("breast cancer", em inglês, daí a
consagrada abreviação).
Não, não se trata aqui de uma defesa da
legitimidade de patentes sobre seqüências de DNA humano, em contradição
com ponderações apresentadas neste
mesmo espaço em 16 de março do ano
passado ("Questão de genes e de princípios"). Continua válido o princípio de
que esse tipo de proteção intelectual deva
ser concedido somente quando estiverem envolvidos ineditismo, invenção e
utilidade -o que é bem difícil de compatibilizar com genes, que nesse aspecto
mais se parecem com dados da natureza,
como os elementos da tabela periódica.
A notícia da patente do BRCA2 pode
ainda assim ser considerada boa porque
configura uma espécie de antipatente, ou
patente preventiva. Ela foi requerida e
obtida por uma entidade britânica sem
fins lucrativos, Cancer Research UK
(www.cancerresearchuk.org), que
apóia com quase 200 milhões de libras
esterlinas anuais (coisa de R$ 1,1 bilhão)
o trabalho de 3.000 cientistas que investigam formas de lutar contra a doença.
A patente vale somente na Europa, mas
é ampla -cobre toda e qualquer tentativa de seqüenciar (soletrar) os caracteres
químicos que compõem o gene, assim
como o desenvolvimento de testes para
identificar suas variações danificadas ou
inativas. Isso deve favorecer, e não atrapalhar, a pesquisa, porque a Cancer Research UK se dispõe a permitir que laboratórios públicos (não-comerciais) trabalhem sem ônus financeiro com a seqüência do BRCA2 em pesquisas. Ou seja, sem pedir licença nem pagar pedágio.
O pedido de patente foi uma espécie de
reação a duas outras patentes polêmicas,
obtidas nos Estados Unidos pela empresa Myriad Genetics, de Salt Lake City (Estado de Utah). Elas cobrem trechos dos
genes BRCA2 e BRCA1 que sofreram
mutações correlacionadas com o aumento de probabilidade de desenvolver
tumores mamários e ovarianos, e não as
versões "normais" do gene.
Isso impunha restrições a quaisquer
outros laboratórios que trabalhassem no
desenvolvimento de testes diagnósticos
para detectar essas mutações mais comuns. A Myriad, por seu lado, comercializa seu próprio teste diagnóstico por nada módicos US$ 2.300. Hospitais e grupos de pesquisa, em particular da Europa, vinham questionando jurídica e eticamente as patentes da Myriad.
A situação parecia ainda mais esdrúxula porque a maior parte da seqüência do
BRCA2 havia sido transcrita e publicada,
em 1995, por um grupo do Institute for
Cancer Research, de Londres, com financiamento da Cancer Research UK. A
patente européia para o BRCA2, assim,
desfaz parte dessa injustiça. |
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