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Micro/Macro
O debate sobre astrologia e ciência
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
O recente interesse na regulamentação da astrologia como profissão oferece a oportunidade de refletir sobre
questões que vão desde as raízes históricas da ciência até a percepção, infelizmente muito popular, de seu dogmatismo. Preocupa-me, e imagino que a muitos dos colegas cientistas, a rotulação do
cientista como um sujeito inflexível, bitolado, que só sabe pensar dentro dos
preceitos da ciência. Ela vem justamente
do desconhecimento sobre como funciona a ciência. Talvez esteja aqui a raiz
de tanta confusão e desentendimento.
Longe dos cientistas achar que a ciência é o único modo de conhecer o mundo
e as pessoas, ou que a ciência está sempre
certa. Muito ao contrário, seria absurdo
não dar lugar às artes, aos mitos e às religiões como instrumentos complementares de conhecimento, expressões de como o mundo é visto por pessoas e culturas muito diversas entre si.
Um mundo sem esse tipo de conhecimento não-científico seria um mundo
menor e, na minha opinião, insuportável. O que existe é uma distinção entre as
várias formas de conhecimento, distinção baseada no método pertinente a cada uma delas. A confusão começa quando uma tenta entrar no território da outra, e os métodos passam a ser usados fora de seus contextos.
Portanto, é (ou deveria ser) inútil criticar a astrologia por ela não ser ciência,
pois ela não é. Ela é uma outra forma de
conhecimento. Na coluna de 28 de julho,
tentei tornar esse ponto claro.
Essa caracterização da astrologia como
não-ciência não é devida ao dogmatismo
dos cientistas. É importante lembrar
que, para a ciência progredir, dúvida e
erro são fundamentais. Teorias não nascem prontas, mas são refinadas com o
passar do tempo, a partir da comparação
constante com dados. Erros são consertados, e, aos poucos, chega-se a um resultado aceito pela comunidade científica.
A ciência pode ser apresentada como
um modelo de democracia: não existe o
dono da verdade, ao menos a longo prazo. (Modismos, claro, existem sempre.)
Todos podem ter uma opinião, que será
sujeita ao escrutínio dos colegas e provada ou não. E isso tudo ocorre independentemente de raça, religião ou ideologia. Portanto, se cientistas vão contra alguma coisa, eles não vão como donos da
verdade, mas com o mesmo ceticismo
que caracteriza a sua atitude com relação
aos próprios colegas. Por outro lado, eles
devem ir dispostos a mudar de opinião,
caso as provas sejam irrefutáveis.
Não creio que a questão seja, conforme
argumentou o senador Artur da Távola
em artigo na Folha de 26 de agosto, um
embate do bitolado mecanicismo freudiano contra o holismo junguiano. Isso
porque o mecanicismo na física não é
freudiano, mas newtoniano.
A física hoje usa técnicas de análise baseadas em métodos qualitativos que podem ser considerados "holísticos", ou
não-reducionistas. É o caso da teoria do
caos, ou da emergência de estruturas
coerentes em sistemas complexos. A
ciência desconhece muito do mundo.
Mas o que é passível desse conhecimento
deve ser analisável de modo objetivo,
não sujeito a opiniões subjetivas. Existem quase tantas astrologias quanto existem astrólogos.
Será necessário definir a astrologia?
Afinal, qualquer definição necessariamente limita. Se popularidade é medida
de importância, existem muito mais astrólogos do que astrônomos. Isso porque
a astrologia lida com questões de relevância imediata na vida de cada um, tendo um papel emocional que a astronomia jamais poderia (ou deveria) suprir.
A astrologia está conosco há 4.000 anos
e não irá embora. E nem acho que deveria. Ela faz parte da história das idéias, foi fundamental no desenvolvimento da astronomia e é testamento da necessidade
coletiva de conhecer melhor a nós mesmos e os que nos cercam. De minha parte, acho que viver com a dúvida pode ser
muito mais difícil, mas é muito mais gratificante. Se erramos por não saber, ao
menos aprendemos com os nossos erros
e, com isso, crescemos como indivíduos.
Afinal, nós somos produtos de nossas escolhas, inspiradas ou não pelos astros.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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