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Guerra do Paraguai trouxe avanços para a medicina
Pesquisa inédita aborda asilo para soldados que ficaram inválidos em combate, criado no Rio de Janeiro em 1868
"Inválidos da Pátria" eram em geral pobres e muitos foram escravos; além de ferimentos das batalhas, o cólera também era ameaça
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
Muitas cidades brasileiras
têm uma rua "Voluntários da
Pátria", em homenagem aos
soldados que foram à Guerra do
Paraguai (1864-1870); certamente nenhuma tem uma rua
"Inválidos da Pátria".
Assim eram chamados os feridos da mesma guerra que retornavam ao país, doentes ou
mutilados. Para abrigá-los, o
Império inaugurou há 140
anos, em 29 de julho de 1868, o
Asilo dos Inválidos da Pátria,
localizado na Ilha do Bom Jesus, baía da Guanabara.
O historiador paulista Marcelo Augusto Moraes Gomes
fez um pioneiro trabalho sobre
o asilo em tese de doutorado
aprovada na USP. Ele mostra
como a necessidade de lidar
com milhares de feridos em
uma guerra na qual a tecnologia bélica havia progredido de
modo intenso provocou avanços na medicina no país, no tratamento tanto de doenças infecciosas quanto de traumas
provocados pelo combate.
Ao analisar o tipo de ferimento dos relatórios e tratados
médicos, ele pôde entender
também como era a "face da batalha". Além de mortes por cólera ou ferimentos por baionetas e projéteis de fuzil de maior
velocidade, ele mostrou o que
acontecia a bordo dos encouraçados brasileiros quando atingidos pela artilharia paraguaia.
Esses navios estavam entre os
mais modernos do mundo, pois
a guerra acelerou não só progressos na medicina, como na
tecnologia bélica e industrial.
Gomes lia, nos anos 1990,
uma biografia do brigadeiro
Antônio de Sampaio (1810-1866), morto em decorrência
de ferimentos causados na batalha de Tuiuti, quando topou
com uma rápida menção ao asilo -os restos mortais do atual
patrono da Infantaria foram
temporariamente guardados
ali. O historiador ficou curioso.
"O asilo existiu por mais de um
século e no Exército quase nada
se comenta sobre ele", diz.
Gomes descobriu, então,
uma cópia de um livro de 1869
de um dos primeiros capelães
do asilo, Manoel da Costa Honorato, que serviu de ponto de
partida para a pesquisa.
Abrigos para inválidos
O asilo foi construído junto à
antiga Igreja do Bom Jesus da
Coluna, erguida pelos franciscanos no começo do século 18.
Duas semanas atrás ela foi reaberta, depois de obras de restauro que duraram quatro
anos, feitas em parceria pela
Fundação Cultural do Exército
e a Escola de Belas Artes da
UFRJ (Universidade Federal
do Rio de Janeiro).
A igreja costumava ser freqüentada pela família real, na
pacata ilha no fundo da baía.
Hoje ela deixou de ser uma ilha
isolada, ligada por aterro à
maior ilha do Fundão, onde está o campus da UFRJ.
Antes mesmo da inauguração oficial no dia do aniversário
da princesa imperial, que contou com a presença do próprio
imperador Dom Pedro 2º, já
havia abrigos provisórios para
feridos de guerra na capital do
império, por exemplo, na Praia
Vermelha, no Rio, e na ponta da
Armação, em Niterói.
Esse tipo de estabelecimento
foi criado para receber homens
invalidados em combate -no
estilo do francês Hotel dês Invalides, onde hoje se situa um
museu e a tumba de Napoleão.
A guerra começou em 1864,
quando o ditador paraguaio Solano López mandou aprisionar
o navio a vapor brasileiro "Marquês de Olinda", que acabara de
partir de Assunção, em represália à intervenção do Brasil na
guerra civil uruguaia.
Foi a guerra com o maior
grau de mobilização da sociedade, relativamente mais até
do que a participação brasileira
na 2ª Guerra Mundial, especialmente em número de soldados recrutados e na proporção
destes com a população do país.
Havia também uma importante dimensão sanitária, lembra Gomes. A ciência não havia
tornado claro como muitas
doenças eram adquiridas e
quais delas teriam chance de
contágio através de contato dos
doentes. Por isso, o asilo foi
criado em um local relativamente isolado.
Os asilados eram obviamente
pobres, muitos eram ex-escravos. Depois de grandes batalhas, chegavam imensas levas
de inválidos de uma só vez. Isso
criava uma questão disciplinar,
pois havia receio da sociedade
sobre o comportamento dessa
soldadesca desmobilizada.
"Miasmas"
A chegada de navios com inválidos era particularmente temida pelas autoridades pelo
risco de espalhar doenças na
capital do império. Na metade
do século 19, era dominante a
teoria dos "miasmas" para explicar doenças infecciosas como o cólera. A causa das doenças estaria em emanações pútridas, em "ares" maléficos.
Um golpe nessa teoria fora
dado em 1854, quando o médico britânico John Snow mostrou que um surto de cólera em
Londres vinha da água contaminada de uma bomba d'água
pública. Snow não conseguiu
identificar o micróbio causador
da doença. A teoria rival, dos
germes, ainda não era muito
aceita. Só o seria depois dos trabalhos do francês Louis Pasteur na década seguinte. E apenas em 1885 o alemão Robert
Koch identificaria a bactéria
Vibrio cholerae como a causadora da doença.
O cólera atacou as tropas da
tríplice aliança criada para resistir ao ataque paraguaio. Antes de ser designado para o asilo, o capelão Honorato esteve
no Paraguai e foi encarregado
de cinco hospitais em Corrientes, Argentina, em março de
1867, para tratamento das vítimas do cólera.
Gomes cita uma dissertação
de 1869 sobre o cólera, defendida na Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro por um ex-cirurgião do exército brasileiro
presente no Paraguai, Silvino
José de Almeida. Ele já acreditava que o cólera fosse uma
moléstia contagiosa, pois, escreveu Almeida, "o homem atacado de cólera era o principal
agente de importação e propagação da moléstia". Para ele, "o
transporte marítimo era o mais
perigoso e o mais apto para a
propagação da moléstia".
Gomes cita casos relatados
por Carlos Frederico dos Santos Xavier de Azevedo, cirurgião-mor da Armada, em tratado médico de 1870. Por exemplo, Camilo Jacinto Fernandes,
de Santa Catarina, 19 anos,
"Imperial [marinheiro] de 2ª
classe, e praça do encouraçado
Colombo, entrou para o Hospital de Sangue da Esquadra, em
operações do rio Paraguai, a 5
de Outubro, trazendo um ferimento, por estilhaço de bala,
na região ilíaca externa do lado
esquerdo". Fernandes morreu,
e o tal estilhaço era provavelmente um rebite da couraça do
navio (veja infográfico à dir.).
O médico em um trecho parece premonitório sobre um tipo de baixa que se tornaria
mais comum nas grandes guerras do século 20, o ferimento
de origem psiquiátrica: "(...) tivemos com nossos colegas ocasião de apreciar depois de bombardeamentos, ou combates,
em que se empenhava a Esquadra, agravarem-se os sintomas
de febres intensas, sucumbindo, algumas vezes, os doentes".
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