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Ciência em Dia
Anencefalia no Supremo Tribunal Federal
Marcelo Leite
colunista da Folha
Todos nascemos para morrer." Essa
quase tautologia foi proferida pelo ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal
Federal (STF), na quarta-feira, quando a
corte derrubou por 7 votos a 4 liminar do
ministro Marco Aurélio Mello que autorizava aborto de fetos anencéfalos (sem cérebro). A frase é prova cabal de que a verdade
também pode servir para obscurecer, até
nas mais altas instâncias da República.
Antes de prosseguir, cabe explicitar que
não se discutirão aqui as tecnicalidades jurídicas do caso. Há quem possa fazê-lo
com maior competência. E acima delas está a questão ética, assim como acima do
Supremo, apesar do nome, está a sociedade, na qual cada cidadão deve ponderar temas desse alcance com a própria cabeça.
É até possível que, considerando abstratamente o problema, o comum das pessoas
se renda ao lobby religioso que sustenta ser
a interrupção desse tipo desgraçado de
gravidez um atentado contra a vida. Tal
opinião merece respeito; não acolhida. Como já foi dito à exaustão em editoriais, artigos e até em debate da campanha presidencial nos EUA, a religião privada não deve interferir na regulação da esfera pública.
Como o STF ainda não decidiu sobre o
mérito da liminar, é o momento de adotar
uma posição vigorosa contra a pretensão
de que uma decisão assim autoritária e
cruel caiba ao Estado. Ela se baseia numa
confusão entre a noção biológica de vida e
a noção jurídica de pessoa. É esse deslizamento semântico que permite a um ministro do STF emitir seu juízo sem corar.
O que a posição maximalista do direito à
vida tenta evitar, a todo custo, é o reconhecimento definitivo de que toca à sociedade
traçar uma linha divisória entre organismo
e pessoa. De que ela não está previamente
dada. De que pode ser adotada por motivos que pareçam tão justos e piedosos aos
olhos de outros quanto os seus próprios.
Um feto anencéfalo não tem chance alguma de sobreviver. Faltam-lhe equipamentos biológicos básicos para se sustentar como organismo e como pessoa. Isso
vem a ser muito diferente da morte certa
que nos aguarda. Nascemos todos para viver e crescer, antes de morrer.
Outro tática diversionista muito em voga
entre juristas é qualificar essa forma de
aborto como "eugênica". É outro deslize
semântico, ao estilo da propaganda de pior
extração. Tenta associar a proposta com a
prática nazista de eliminar seres humanos
considerados biologicamente inferiores.
De novo, qualquer pessoa sensata pode
ver que abortar fetos sem cérebro não tem
nada a ver com mandar pessoas para a câmara de gás. É preciso reconhecer como
plausível, para muitos, a noção de que um
ser assim não seja titular de direitos. O
mesmo não se pode dizer de judeus, ciganos, negros ou árabes -a não ser que se
instaure nova forma de loucura coletiva.
Por outro lado, é de pessoas, sim, que se
trata: das mães. Obrigá-las a carregar no
ventre um feto inviável é manifestamente
abusivo. Daria um grande documentário
se os ministros do STF que votaram contra
a liminar pudessem ser constrangidos a
proferir seus votos na presença de mulheres nessa condição, olhando em seus olhos.
Muito pior do que morrer sem cérebro é
viver sem ele.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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