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Micro/Macro
Mutações do bem e do mal
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Dos primeiros animais unicelulares
até a espécie inteligente que domina
o planeta, todos os seres vivos são produto de mutações". Assim termina o filme
"X-Men 2", no qual forças do bem e do
mal travam mais uma batalha de sua
guerra sem fim. Ou seja, somos todos
mutantes, os humanos e as criaturas de
poderes extraordinários que, no filme, os
humanos chamam de mutantes. A diferença é que, evolutivamente, essas criaturas estão um passo ou dois adiante.
Elas são nossas descendentes, mesmo se
desprezadas e temidas.
Esse tema imediatamente transporta o
filme da ficção científica à esfera sociopolítica. Sem dúvida, o filme é superdivertido, com ritmo desenhado para um
público com capacidade de foco de não
mais do que 15 segundos. Você sai cansado só de assistir. Mas o filme fala também de temas bem mais delicados, de
preconceitos sociais, da aceitação do diferente, das consequências da pesquisa
científica -em particular na área da genética- e de sua manipulação política.
Preconceitos gostam de divisões simples: preto e branco, homem e mulher,
rico e pobre. Assim fica mais fácil separar
o bem do mal. Seja a cor da pele, o sexo, a
situação social, a polarização simplifica,
massifica as distinções superficiais. A deturpação moral, segundo a ótica do preconceituoso, é então equacionada com
algo palpável, visível, imediatamente rotulável e identificável.
Nem todos os mutantes no filme são
imediatamente identificáveis. Vários deles parecem humanos normais e agem
como tal: têm medo, se enamoram, têm
ciúmes. Fora, claro, o fato de serem todos
belos, mesmo aqueles mais grotescos,
como o mutante alemão Kurt Wagner.
Ele é a imagem do mal -um anjo com
aspecto demoníaco- estampada em
uma criatura absolutamente "do bem",
um anjo de fato, oriundo de um circo de
Munique, capaz de teletransporte: o fenômeno previsto pela mecânica quântica no qual partículas subatômicas e,
quem sabe um dia, objetos, podem se rematerializar em diferentes pontos do espaço quase que instantaneamente. Kurt
Wagner é ainda mais sensacional, uma
criatura que une teletransporte e livre-arbítrio, ele mesmo determinando onde
vai ou não reaparecer.
Alguém pergunta a um dos fisicamente
mais grotescos -Mística, uma mutante
com pele azulada, olhos amarelos e curvas acentuadíssimas, capaz de adotar
qualquer forma animal, inclusive a de
mulheres belíssimas- por que ela não
permanece em uma dessas formas, evitando o seu aspecto assustador. A mensagem de sua resposta é simples: "Porque eu não deveria ter de me transformar para ser aceita".
Claro, ela é belíssima, mas não segundo critérios humanos. Conceitos de beleza não podem ser separados de valores
morais, limitados como são por construções estéticas dependentes do contexto
social e cultural onde são criadas. O belo
é o que se conforma aos padrões do óbvio, do que não gera surpresas, do que
não é diferente. O belo não assusta.
Entra em cena a engenharia genética, a
manipulação do gene, oferecendo, ao
menos em teoria, a possibilidade da
construção de mutantes. O homem tira
as rédeas da evolução das mãos da natureza. O processo de seleção natural está
fundamentalmente interligado às mutações genéticas que, por definição, são
aleatórias: elas ocorrem, por exemplo,
devido à interação de radiação -oriunda do espaço e da Terra- e reações químicas com os genes. Ao alterar deterministicamente a estrutura dos genes, o
cientista genético se torna escritor de um
capítulo (ou mais) na longa história da
evolução da vida na Terra. A espécie humana torna-se capaz de se reinventar.
Toda grande inovação tecnológica implica uma redefinição de poder. O avião
transporta pessoas, apaga incêndios em
florestas e joga bombas. A fissão nuclear
gera energia, ajuda no combate ao câncer e é usada em bombas. A engenharia
genética ajuda no combate à fome (ou
pode), no combate a inúmeras doenças
(se deixarem) e na fabricação de "bombas" biológicas (já ocorre).
O filme "X-Men 2" mostra isso: mutantes com poderes mais avançados são
ainda essencialmente humanos -as diferenças são físicas, não morais. O poder,
em mãos inspiradas, pode gerar o bem.
Mas, em mãos despreparadas ou imorais, humanas ou mutantes, irá necessariamente gerar o mal.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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