São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002 |
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+ ciência A TRAJETÓRIA HAWKING
Gregory Benford especial para a Folha
Stephen Hawking parecia estar um pouco pior, como
sempre. É um milagre que continue se agarrando à vida, mesmo depois de 20 anos sofrendo da doença de
Lou Gehrig. Cada vez que o vejo, penso que será a última, que não conseguirá continuar agarrado a um fio tão frágil
por muito mais tempo.
A matemática não consegue lidar com quantidades físicas como a densidade, que vão literalmente até o infinito. Na verdade, a física do século 20 diz respeito, em grande medida, a modos de evitar as infinidades que aparecem na teoria das partículas e na cosmologia. A idéia de partículas pontuais é prática, mas leva a problemas que não têm respostas fáceis. Lembrei que havia conversado com Stephen sobre maneiras matemáticas de contornar esse problema certa noite, numa festa no King's College. Havia analogias a traçar com métodos da mecânica quântica elementar, métodos que Stephen estava tentando transferir para esse terreno surrealista. "Hoje, parece que a maneira como o Universo começou pode ser determinada, sim, usando o tempo imaginário", disse Stephen. Falamos um pouco dessa idéia. Stephen vinha usando um artifício matemático pelo qual o tempo, como conveniência de anotação, é substituído por algo chamado tempo imaginário. Isso muda a natureza das equações, de modo que ele poderia usar algumas idéias do minúsculo mundo quântico. Tempo imaginário Nas novas equações ocorre uma espécie de "efeito túnel", pelo qual o Universo, antes do Big Bang, tem muitas maneiras diferentes de passar pela singularidade. Com o tempo imaginário, podemos calcular as chances de um túnel dado levar até nosso Universo primordial, após o início do tempo tal como o conhecemos. "Sim, as equações podem ser interpretadas assim, é claro", argumentei. "Mas, na realidade, isso é apenas um truque, não é?" Stephen respondeu: "Sim, mas é um truque que abre perspectivas, talvez". "Não compreendemos o tempo profundamente", respondi, "então substituir o tempo real por um tempo imaginário não significa muito para nós." "O tempo imaginário é uma nova dimensão que forma um ângulo reto com o tempo real, ordinário", explicou Stephen. "Ao longo desse eixo, se o Universo satisfizer a condição de não ter limite, poderemos fazer nossos cálculos. Essa condição diz que o Universo não tem singularidades ou fronteiras na direção imaginária do tempo. Com tal condição, não haverá começo ou fim do tempo imaginário, assim como não há começo ou fim de um caminho na superfície da Terra." "Desde que o caminho descreva uma volta completa da Terra", respondi. "Mas, estando no tempo imaginário, não sabemos se não haverá um limite." "Minha intuição diz que não haverá bloqueio nessa coordenada específica, de modo que nossos cálculos fazem sentido, sim." "O problema é justamente esse, não é mesmo? Fazer sentido. O tempo imaginário é apenas uma conveniência matemática", eu disse, irritado com o abismo que separa os espaços matemáticos frios do imediatismo do mundo real. É uma tensão comum, quando se faz física. "Não guarda relação com a maneira como sentimos o tempo. Os segundos passando, o nascimento, a morte." "É verdade. Nossas mentes trabalham no tempo real, que começa com o Big Bang e vai terminar, se houver um Big Crunch [grande contração" -hipótese que hoje parece pouco provável, em vista dos últimos dados, que indicam a ocorrência de uma expansão em aceleração. A consciência chegaria ao fim numa singularidade." "O que não seria um grande consolo", comentei. Stephen sorriu. "Não, mas eu gosto da condição da ausência de fronteira. Ela parece deixar implícito que o Universo se encontrará num estado de alto grau de ordem em uma extremidade do tempo real, mas estará em desordem na outra extremidade do tempo, de modo que a desordem aumenta numa direção do tempo. Definimos essa direção como sendo a direção do tempo crescente. Quando gravamos alguma coisa em nossa memória, a desordem do Universo vai aumentar. Isso explica por que lembramos apenas acontecimentos que estão no que chamamos de o passado, e não no futuro." "Lembra o que você previu em 1980 sobre teorias finais, como essa?", disse, chamando sua atenção. "Achei que talvez pudéssemos encontrar uma teoria unificada completa até o final do século." Stephen fez o o aparelho que transforma seus toques no teclado em sons dar uma risada irônica. "OK, eu estava enganado. Naquela época, a melhor candidata parecia ser a supergravidade. Agora, parece que essa teoria pode ser uma aproximação de uma teoria mais fundamental, a das supercordas. Fui um pouco otimista demais ao esperar que pudéssemos resolver o problema até o final do século. Mas acho que ainda há uma chance de 50% de encontrar uma teoria unificada completa em 20 anos." "Sempre desconfiei que, quando a gente adota escalas cada vez menores, a estrutura nunca termina -e que as teorias também não vão terminar nunca", aventei. "É possível que não exista uma teoria última da física. Em lugar disso, vamos continuar a descobrir novas camadas de estrutura. Mas parece que a física vai se tornando mais simples e mais unificada, à medida que diminui a escala para a qual olhamos. Existe uma escala de comprimento última, o comprimento de Planck, abaixo da qual talvez seja impossível definir o espaço-tempo. Acho que haverá um limite ao número de camadas de estrutura, e haverá alguma teoria última, que vamos descobrir, se tivermos inteligência suficiente." Começamos então a falar dos trabalhos recentes sobre os "universos bebês" -bolhas no espaço-tempo. Para nós, criaturas grandes, o espaço-tempo é como o mar visto de um grande navio, liso e calmo. Visto de bem perto, porém, em escalas minúsculas, é feito de ondas e bolhas. E, em escalas extremamente finas, bolsões e bolhas de espaço-tempo podem formar-se aleatoriamente, surgindo e depois se dissolvendo. Os detalhes menos conhecidos da física de partículas sugerem que às vezes (rara, mas inevitavelmente) essas bolhas podem crescer, tornando-se um universo em escala plena. Isso pode ter acontecido muito no instante imediatamente seguinte ao Big Bang. Na verdade, algumas das propriedades de nosso Universo podem ter sido criadas pela espuma do espaço-tempo que percorreu aqueles segundos infinitesimais, agitando-os. O estudo dessa possibilidade utiliza o "cálculo de wormholes", que trata das múltiplas bolhas borbulhantes possíveis (e das conexões entre elas, os "buracos de minhoca"). Fazendo uma média dessa espuma, no sentido matemático, e alisando um pouco suas propriedades, Hawking e outros vêm tentando descobrir se um universo final, bastante benigno, como o nosso, foi ou não consequência inevitável daquela turbulência inicial. Ainda não existe um consenso final sobre esse ponto entre os cientistas, e talvez nunca se chegue a um, na medida em que os cálculos são muito difíceis, guiados mais pela intuição do que por fatos. Decidir se eles prevêem alguma coisa ou não, de maneira significativa, é questão de opinião. Isso lembra o aforismo de Oscar Wilde segundo o qual, em assuntos de grande importância, o estilo sempre é mais importante do que a substância. Se esse quadro da primeira fração de segundo estiver correto em qualquer medida, ou não, depende muito do conteúdo energético da espuma. A energia necessária para formar essas bolhas seria contrabalançada por uma energia oposta, negativa, que vem da atração gravitacional de toda a matéria contida na bolha. Se a pressão de dentro para fora contrabalançar a atração de fora para dentro (uma pressão, na realidade) da massa, então teremos um universo bastante parecido com o nosso: bastante moderado, com o espaço-tempo não sujeito a qualquer curvatura aguda -ou seja, o que os astrônomos descrevem como "plano".
Parece que é esse o caso em escalas relativamente minúsculas, como em nosso Sistema Solar, e o plano prevalece até mesmo na escala dimensional de nossa galáxia. Na realidade, o plano se mantém em escalas imensas, pelo que podemos enxergar por enquanto. Ora, bolhas desse tipo ainda podem se formar. Um espaço-tempo inteiramente diferente poderia surgir de repente em sua sala de jantar. Ele começaria inimaginavelmente pequeno, então cresceria até atingir o tamanho de um balão -mas não diante de seus olhos, pois, por razões fundamentais, você não o poderia enxergar. "Eles não se formam no espaço, é claro", disse Stephen. "Não significa nada indagar onde, no espaço, essas coisas ocorrem." Elas não ocupam espaço em nosso Universo, e sim em seus próprios universos, expandindo-se para formar espaços que não existiam antes. "Depois que os fazemos, eles se separam de nós", eu disse. "Não deixam resquícios? Fósseis?" "Acho que não poderia haver", respondeu Stephen. "Como um filho ingrato que sai de casa e não escreve para os pais." Quando falo de imensidades, às vezes busco uma comparação humana. "Não se formariam em nosso espaço, mas em outro espaço-tempo." Conversamos por algum tempo sobre algumas especulações a respeito do assunto que eu inseri em dois romances meus, "Cosm" e "Timescape". Usei Cambridge e o estilo científico britânico em "Timescape", publicado em 1980, antes de essas idéias se tornarem moeda corrente. Cheguei até elas em parte devido a algumas conversas sobre diversos assuntos que eu tinha tido com Stephen -todas bem disfarçadas nos livros, é claro. Eu tinha chamado esses espaços-tempos fechados de "universos-cebola", já que, em princípio, poderiam ter outros espaços-tempos fechados trancados dentro deles, e assim por diante. É uma sensação estranha quando um palpite seu acaba mostrando conter alguma substância -na medida, é claro, em que se pode dizer que são substanciais idéias tão etéreas quanto essas. "Então eles se formam e depois desaparecem", refleti. "Somem. Entre nós e esses outros universos há o nada absoluto, no sentido exato: nenhum espaço ou tempo, nenhuma matéria, nenhuma energia." "Não pode haver nenhuma maneira de chegar até eles", disse a voz mecânica de Stephen. "O abismo entre eles e nós não pode ser transposto. Está além da física, porque é verdadeiramente nada -não é físico, em sentido algum. A risada mecânica surgiu de novo. Stephen gosta de sentir a atração da reflexão filosófica e parece se divertir com a idéia de que universos são simplesmente uma dessas coisas que acontecem de tempos em tempos. Seu enfermeiro apareceu para lhe fazer uma pequena limpeza. Ficar confinado a uma cadeira de rodas, sem poder se mover, é algo que cobra um preço aviltante de nossa dignidade, mas Stephen não demonstrou reação alguma à rotina diária de receber cuidados íntimos de outra pessoa. Quem sabe isso, para ele, até ajude sua mente a se libertar das imposições do mundo. A secretária de Stephen saiu discretamente e perguntou se eu jantaria com ele no Caius College. Eu tinha pensado em comer no meu restaurante indiano favorito e depois simplesmente passear sozinho pelas ruas de Cambridge, porque adoro o ambiente de lá -mas concordei imediatamente. Jantar na mesa formal da faculdade é uma das experiências legendárias da Inglaterra. Eu me lembrava perfeitamente de cada jantar desses aos quais já fora, cujos convidados muitas vezes têm línguas mais afiadas do que facas. Seguimos pelos caminhos arborizados das faculdades, cujas pedras cinzentas e madeira gasta ecoavam vozes e o guincho de bicicletas enferrujadas. Era um anoitecer com neblina, e a cadeira de rodas de Stephen saltitava sobre os paralelepípedos. Ele fazia questão de dirigi-la ele mesmo, embora seu enfermeiro viesse atrás, apreensivo. Nunca me ocorrera até que ponto essa obrigatoriedade de cuidar e ser cuidado 24 horas por dia pode ser cansativa. Algumas pessoas andavam atrás de nós, olhando para ele. "Não dê bola", disse a voz mecânica. "Muitos vêm aqui só para ficar me olhando." Gregory Benford é colaborador da "Reason Magazine" e professor de física na Universidade da Califórnia em Irvine Tradução de Clara Allain Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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