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+ ciência
As muitas viagens de José Reis
(1907-2002)
Folha Imagem
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José Reis em sua casa, em São Paulo, em 1978 |
O geneticista Crodowaldo Pavan homenageia o médico, microbiologista e jornalista científico considerado o pai da divulgação das ciências no Brasil, que morreu no último dia 16
Crodowaldo Pavan
especial para a Folha
José Reis deixa um testemunho de vida inquietante,
pois nunca se prendeu ao cotidiano, viajando tanto
de forma física como de forma intelectual, atrás de
novos desafios e perspectivas. Na introdução de sua
biografia para o prêmio Kalinga, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em 1975, traçou, com felicidade, o desenho de sua
procura, citando os versos daquele que talvez tenha sido seu poeta predileto, o alemão Rainer Maria Rilke:
"Eu vivo minha vida em círculos crescentes".
Dessa opção nasceram desabafos tais como: "Minha
vida, como sempre, é um corre-corre frustrante. Voltei
do Rio, onde dei no Instituto de Biofísica um curso sobre Comunicação em Ciência". E pela sequência da carta em que diz isto, escrita para a amiga Maria Julieta Ormastroni, percebe-se que, na verdade, o curso foi um
sucesso e ele, José Reis, estava realizado como professor
e divulgador científico, estando com dificuldades de
voltar à rotina em São Paulo.
Reis nasceu no Rio de Janeiro, em 1907, mas diz na
carta citada anteriormente: "Não me habituo mais ao
Rio, mas lá se encontra o resto de minha família, meus
dois irmãos sobreviventes dos 13 que fomos e os sobrinhos e sobrinhos-netos, além de Marcos, de Dagmar
(primeiro filho e nora) e dos meus próprios netos. Então a família se reúne e a gente fica na situação de Vinícius, vontade de ficar, mas tendo de ir embora..." Essa era a tensão que movimentava o divulgador científico e
fazia dele a criatura que sempre partia em direção a novas atividades. Era uma tensão não resolvida, que encontrava na prática intelectual formas de atenuar suas constantes indagações.
Primeiros escritos
José Reis descobre a comunicação ainda criança, pelas mãos da mãe e do irmão mais velho, e faz seus primeiros versos entre oito e nove anos,
numa alfabetização ao mesmo tempo rígida e criativa.
Também precocemente descobre que pode se relacionar com o mundo ao seu redor, através dos traços do
desenho. Reproduz edições de "A Careta" [revista publicada no Rio no início do século" em bico de pena, evidentemente com conteúdos extensos na parte de poesias, pois além das suas havia colaborações dos irmãos.
É ainda na correspondência com a amiga Maria Julieta Ormastroni que transparece essa vocação do trato
com a expressão comunicacional, por via do caminho
da emoção: "Outro dia, sozinho em casa -Annita
[Swenssen, mulher do pesquisador e jornalista] sempre
que pode aproveita as voltas de Marcos e passa fins de
semana com os netos, o que lhe faz muito bem-, estive
lendo velhas poesias minhas. Um dia lhe mandarei uma
coleção delas. Sabe que nasci para poeta e pintor? Por isso é que me chamo de boêmio frustrado."
Tinha uma disciplina rígida tanto na prática no laboratório quanto no jornalismo. Deixava transparecer
suas inquietações e perplexidade apenas no convívio
com os amigos mais íntimos. Nas reuniões das sextas-feiras no Instituto Biológico de São Paulo, apelidadas
por ele de "Sextaferinas", exercitava a disciplina e a criatividade. A origem desses encontros foi relatada por ele,
em 1962, na revista "O Biológico", do próprio instituto.
Durante os anos 30, essas reuniões, comandadas desde o início por Henrique da Rocha Lima, transformam-se num verdadeiro fórum de discussão, que ultrapassa
em larga escala assuntos restritos ao Instituto Biológico.
A programação era anunciada pelos jornais paulistas.
Para que houvesse disciplina e objetividade, o ritual das
reuniões obedecia uma verdadeira liturgia. José Reis
tratava a reunião como uma "missa" e comentava: "Para nós, então moços, esses encontros às vezes até importunavam, como maçada que nos interrompia os trabalhos de laboratório. Para Rocha Lima, porém, eram
como missas em colégio de padre, não podiam faltar".
Devo destacar que realmente, como dizia J. Reis, foi o
prof. Rocha Lima o grande incentivador das reuniões
de sexta-feira, no Instituto Biológico. Tive a sorte de frequentar essas reuniões e, numa delas, em 1938, conheci
pessoalmente José Reis e a partir daí começamos nossa
trajetória juntos. Era extraordinário o que assistíamos
nessas reuniões: ao lado das discussões sobre as conquistas científicas, eram incluídos assuntos gerais de sociologia, política, além de literatura e música, compartilhados por cientistas, também entusiasmados e competentes no trato dessas áreas.
SBPC
Uma das conseqüências dessas reuniões foi a criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1948. No livro "José Reis: Jornalista, Cientista e Divulgador Científico", escrito por mim e por
Glória Kreinz em 2001, lembro que "a SBPC foi criada
por Maurício Rocha e Silva, José Reis, Paulo Sawaya e
Gastão Rosenfeld. O grande salto cultural que ocorreu
no Brasil após a fundação da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência é comparável ao que ocorreu depois de 1934, com a criação da USP.
Como cientista, José Reis foi amigo de André Dreyfus
(1897-1952), com quem fez um curso de histologia. Teve
desempenho louvável e, como se destacou em seu trabalho científico, com a publicação do "Tratado das
Aves (Ornitopatologia)", escrito com a colaboração de
sua esposa Annita Swenssen Reis, foi convidado para ir
aos Estados Unidos. Se quisesse poderia ter ficado lá
por muito tempo, mas voltou porque tinha raízes aqui.
Como administrador também se destacou, sendo um
dos batalhadores pela fundação da Faculdade de Economia e Administração, a conhecida FEA/USP, entre
outras entidades que ajudou a criar. Como jornalista,
dirigiu a redação da Folha de 1962 a 1967.
José Reis fez muito pela cultura brasileira, fazendo da
divulgação científica uma luta para melhorar a qualidade de vida nacional. Deixa saudades, mas deixa também, para quem tiver a coragem de segui-lo, a imagem
dos círculos crescentes, da indagação permanente, da
espiral em busca do infinito. É nessa direção que pretendemos continuar.
Crodowaldo Pavan, 82, geneticista, professor emérito da USP e da
Unicamp, foi presidente do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) de 1986 a 1990. É presidente da Abradic (Associação Brasileira de Divulgação Científica)
Colaborou Glória Kreinz, coordenadora de pesquisa do Núcleo José
Reis de Divulgação Científica, da ECA/USP
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