São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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+ ciência

MATEMÁTICO BRASILEIRO E MICROBIOLOGISTA AMERICANA ROMPEM O RIGOR FORMAL DE SUAS DISCIPLINAS E TRANSFORMAM IDÉIAS CIENTÍFICAS EM MÚSICA E PINTURA

ARTES EXATAS (E BIOLÓGICAS)

Julie Newdoll
"A Passagem de Gilgamesh Através de um Canal de Amônia para o Jardim dos Deuses", quadro de Julie Newdoll no qual o mítico herói mesopotâmico, personagem de uma das mais antigas narrativas conhecidas, simboliza o íon de amônia na sua passagem para dentro da célula pelo canal AmtB, uma das proteínas mais antigas conservadas entre as espécies na história da evolução

Claudio Angelo
editor de Ciência

Max Planck talvez ficasse honrado, mas a homenagem foi no mínimo dúbia. Em junho passado, um júri no México resolveu dar um dos maiores prêmios ibero-americanos de composição, o Rodolfo Halffter, a uma peça para orquestra com o título nada singelo de "H-Barra Igual a Zero". A música explora o cenário hipotético de a constante h-barra, que o físico alemão descobriu em 1900 e que iniciou a mecânica quântica, ter valor nulo. A chamada constante de Planck determina que a energia no Universo não se distribui de forma contínua, mas viaja em minúsculos pacotes, que o cientista (1858-1947) batizou de "quanta". "Se h-barra fosse igual a zero", explica o matemático brasileiro Guilherme Carvalho, "as partículas pontuais seriam pontuais mesmo, talvez o Universo não existisse e a mecânica quântica não faria sentido". O que sobraria? "Uma infinidade de partículas perdidas aqui e ali fazendo bagunça e, quem sabe, uma lembrança do Bach", brinca. Carvalho, 29, é o autor da peça premiada no México. Em 2000, ele largou sua especialidade matemática, a análise de equações diferenciais parciais -com um doutorado engatilhado nos EUA- para se dedicar à sua vida paralela como violoncelista e compositor. "A matemática é uma linguagem extremamente especializada e precisa. A beleza toda da coisa depende do entendimento dessa linguagem. É arte, mas uma arte hermética. Eu me dei conta disso de uma forma muito clara quando percebi que não entendia muito do assunto de um colega algebrista, e que ele também não sabia bem do que eu estava falando." Em seu doutorado na Universidade de Paris 8, o brasiliense nascido na França trabalha com representações musicais de idéias matemáticas. Suas composições têm títulos como "A Reta é um Espaço Métrico Completo", "Toute Fonction Dérivable est Continue" (toda função derivável é contínua, em francês), e "Topologie Faible" (topologia fraca). A sacada, segundo o compositor, é "relacionar os objetos musicais entre si [da maneira] como os objetos matemáticos estão relacionados na dita idéia". Um exemplo é o chamado princípio de Cavalieri, segundo o qual dois sólidos com a mesma altura e áreas iguais em cada seção transversal têm o mesmo volume. "Não importa como você empilha dez moedas iguais, numa torre reta ou ondulada: o volume é sempre o mesmo", afirmou Carvalho à Folha. Em uma peça para caixa clara, harpa e eletrônica em tempo real homônima do princípio matemático, o compositor sobrepõe frases de harpa que são retomadas e modificadas pela caixa. "Os volumes e a acumulação de "camadas" -as seções transversais- estão nesses ciclos sobrepostos", explica. Do outro lado do Atlântico -aliás, na borda do Pacífico-, no Estado americano da Califórnia, a microbiologista Julie Newdoll, 42, também transforma ciência em arte. Sua trajetória, no entanto, foi oposta à de Carvalho: Newdoll começou como estudante de graduação em artes plásticas na UCSF (Universidade da Califórnia em San Francisco) e foi fisgada por um curso de biologia no segundo ano de faculdade. Hoje, pinta quadros a óleo cujas personagens são proteínas, neurônios e receptores celulares. Suas telas têm feito a cabeça de editores de revistas científicas como a "Science", a "Nature Reviews" e a "Public Library of Science", que as têm publicado em suas capas. Sua "descobridora" foi a bióloga Elisabeth Blackburn, também da UCSF, que ficou famosa neste ano ao ser demitida do Conselho de Bioética da Casa Branca por apoiar as pesquisas com células-tronco.

Microscópio sobre tela
Newdoll, que pinta desde os dez anos, começou como ilustradora médica e desistiu. "É um trabalho muito detalhista. E chato", conta. Depois, passou a trabalhar nos laboratórios da universidade com computação gráfica, e foi cooptada por Hollywood -por sete anos-, para trabalhar em filmes como o (hoje) "cult" "Tropas Estelares" (1997), de Paul Verhoeven. "Eu cuidava da iluminação daqueles insetos", ri. "Mas depois de um tempo, esse trabalho te esgota." A pintora voltou à tela (de tecido) há cinco anos e abriu uma empresa para comercializar suas obras, a "Brush with Science" (www.brushwithscience.com). Vários de seus quadros usam imagens de microscopia eletrônica, impressas no pano, sobre as quais elas aplica tinta a óleo depois. Uma série de quadros sobre os sentidos foi composta assim, com neurônios do bulbo olfativo humano convivendo com flores e personagens mitológicas. "Ainda uso bastante o computador para planejar os quadros, porque muitas vezes as imagens de microscópio são distorcidas, diz Newdoll. Para quem duvida da qualidade, a pintora-cientista americana acaba de receber um convite para expor na Bienal de Florença no ano que vem.

Distorções
Apesar de achar que música e matemática têm tudo a ver, Carvalho diz ter optado pela primeira pelas possibilidades diferentes que ela oferece de interpretar um mesmo discurso, embora a apreciação profunda de ambas exija iniciação. "Com relativamente pouco esforço você pode dizer porque gosta ou não do concerto para violoncelo do [György] Ligeti; mas se eu te digo que o teorema de Gauss-Bonnet é de uma beleza fantástica, você só poderá comentar pertinentemente se tiver estudado geometria diferencial", afirma. "Então agora eu sou um matemático crente, mas não-praticante."
O brasileiro não é o primeiro nem o único a explorar as ciências físicas na música erudita. O romeno Iannis Xenakis (1922-2001) criou a chamada música estocástica, "genial e cheia de porcarias quanto à matemática utilizada". O americano Tom Johnson usa algoritmos para compor suas peças minimalistas. Mais recentemente, o britânico Jaz Coleman, músico erudito que na encarnação passada fundou a banda experimental punk Killing Joke -que, aliás, fazia parte da discoteca de Carvalho-, resolveu se juntar a seu irmão Piers, físico da Universidade Rutgers (EUA), para criar a "Música do Quantum", um concerto no qual a teoria quântica de Max Planck vira partitura. Mas a empolgação do público com a música dos irmãos Coleman, segundo a revista "Nature", não é lá muito alta.
Carvalho diz que, na fusão de ciência e música, uma delas sempre será sacrificada. "Só funciona de verdade quando as decisões tomadas -porque há que tomar decisões pra representar- são de cunho musical, não científico. Ou seja: você certamente está incluindo "erros" científicos na sua música. Não tem problema, eu queria era fazer música mesmo; pra fazer ciência, o vocabulário é outro."
Cientista militante, Julie Newdoll discorda. "O sacrifício não ocorre necessariamente. Depende da sua formação. É raro para um artista ter formação científica, então eu prefiro achar que eu sou talentosa o suficiente para produzir imagens que cheguem a algum lugar." Ela diz que os próprios cientistas gostam de achar que estão fazendo arte. "E eles ficam realmente ofendidos quando você não os considera artistas. Afinal, nós temos o mesmo objetivo: explicar o mundo, ainda que de maneiras totalmente distintas."


Onde encomendar
"A Reta é um Espaço Métrico Completo", em "Confluencias", do acordeonista espanhol Esteban Algora (www.severalrecords.com)



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