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Ciência em Dia
Faro fino para tumores
Marcelo Leite
colunista da Folha
Há um cheiro de Ig Nobel no ar. Para
quem não conhece, esse é o nome de
um prêmio inventado por pesquisadores
dados à pilhéria reunidos na revista "Annals of Improbable Research". Cães treinados para farejar tumores em amostras de
urina humana seriam bons candidatos para a cerimônia da entrega do galardão, nesta quinta-feira, mas não vai dar tempo de
convidá-los para a festa.
O trabalho em questão, "Detecção Olfativa de Cânceres Humanos por Cães: Estudo
de Prova de Princípio", de um grupo do
Hospital Amersham e outras instituições
britânicas, saiu ontem na conceituada publicação "British Medical Journal", a
"BMJ" (bmj.com). Foi distinguido na
"BMJ" com um comentário de T.J. Cole,
professor de estatística médica do Instituto
de Saúde da Criança de Londres.
Apesar de elogiar o experimento como
"simples e elegante", Cole parece não ter
resistido ao apelo óbvio do humor. Ao pé
de seu comentário, declara um "conflito de
interesses": é dono de um labrador com
pelagem chocolate. Ele abre o texto com
uma epígrafe intraduzível da escritora norte-americana Dorothy Parker (1893-1967):
"You can't teach an old dogma new tricks"
(não se podem ensinar truques novos a um
dogma velho, num trocadilho com "dog").
O trabalho é sério, no entanto (assim como esta coluna). Prova disso são os resultados obtidos: um grupo de seis cães de raças e idades diversas, treinados durante sete meses para distinguir amostras de urina
de pessoas com câncer de bexiga de amostras de pacientes sem tumores, conseguiu
fazê-lo em 41% das vezes, quando submetidos a amostras novas. Isso é quase três
vezes mais do que ocorreria ao acaso (em
14% das ocorrências, segundo o artigo).
Tomaram parte no experimento 36 pessoas com câncer. Entre os 108 pacientes do
grupo de controle havia homens e mulheres sadios e doentes, mas com patologias
diversas de câncer. Cada cachorro tinha de
indicar, entre sete amostras, qual provinha
de alguém com tumor. O procedimento se
repetiu nove vezes com cada animal, ou 54
baterias de testes que resultaram em 22
acertos. Presume-se que tumores produzam compostos voláteis característicos,
mas em quantidades diminutas, que o faro
aguçado dos cães seria capaz de distinguir.
O comentarista T.J. Cole conta que vários
cães implicaram com um dos pacientes do
grupo de controle, apontando sua urina
como suspeita de câncer de bexiga, embora exames indicassem o contrário. Diante
da insistência animal, uma investigação
mais profunda revelou que a pessoa tinha
um carcinoma, sim -no rim.
Outra revista médica britânica, a "Lancet", aproveitou para pegar uma carona.
Ao saber que o artigo de John C.T. Church
e colaboradores sairia na "BMJ", distribuiu
a jornalistas credenciados duas cartas publicadas sobre o assunto. Uma delas, de 15
de setembro de 2001, narrava o caso do labrador Parker, que de repente deu de cismar com um eczema antigo na coxa do dono. Confiando no faro do cão, voltou ao
médico, e um novo exame revelou tratar-se
de um carcinoma. A outra carta conta a
história de um mestiço de border collie
com doberman que invocara com a verruga na coxa de sua dona. Uma biópsia acabou revelando que se tratava de um melanoma maligno, segundo a correspondência -publicada num suspeitíssimo 1º de
abril de 1989.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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