|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
Biologia da contestação
Marcelo Leite
editor de Ciência
Depois do cientista Thomas Butler,
condenado nos EUA por negligência na manipulação de microrganismos
de interesse para guerra biológica, agora
é a vez de um artista -Steve Kurtz- ser
processado sob os rigores do Patriot Act
(leis antiterrorismo aprovadas nos EUA
após o 11 de Setembro). Sintomaticamente, Kurtz é ativista de um movimento de "biologia contestacional".
O artista é membro de um grupo radical chamado CAE, Critical Art Ensemble
(www.critical-art.net), e professor da
Universidade Estadual de Nova York
(Suny) em Buffalo. As suspeitas levantadas por promotores contra ele começaram a ser consideradas há pouco mais de
uma semana por um Grande Júri Federal
-um tipo de tribunal em que cidadãos
norte-americanos comuns julgam não a
culpa de uma pessoa, mas se as evidências reunidas contra ela são suficientes
para levá-la a julgamento. Até a conclusão desta edição não havia decisão.
As circunstâncias em que a investigação contra Kurtz foi iniciada são surreais
(veja em www.caedefensefund.org). Segundo a "newsletter" científica "The
Scientist" (www.the-scientist.com), tudo começou com uma ligação do artista
para o número de emergência 911 no dia
11 de maio: Kurtz pedia ajuda para sua
mulher, que havia morrido do coração
durante o sono.
Policiais e paramédicos que foram a
sua casa notaram, no entanto, a presença
de materiais que consideraram suspeitos, como placas de Petri (discos de vidro
usados em laboratórios de biologia) e
outros utensílios de pesquisa. Avisaram
o FBI, que providenciou um mandado
de busca. Durante dois dias, agentes da
Força-Tarefa Conjunta de Bioterrorismo
em trajes de segurança isolaram o quarteirão e vasculharam a casa do artista.
Segundo o FBI de Buffalo, nenhum
agente perigoso foi encontrado. Havia na
casa de Kurtz amostras de bactérias, inclusive uma linhagem de Escherichia coli
(um pau-para-toda-obra dos laboratórios de microbiologia). Segundo o advogado de defesa Paul Cambria, era inócua
e se destinava a projetos artísticos sobre
biotecnologia. Só que os investigadores
decidiram dar uma olhada também nos
escritos anteriores de Kurtz e de seu grupo, e aí a coisa toda se complicou.
Kurtz não está dando entrevistas, mas
a "The Scientist" reproduz trechos de
um e-mail seu que circula na internet.
"Fiquei detido por 22 horas no FBI. Eles
apreenderam o corpo de minha mulher,
minha casa, meu gato e meu carro. Esses
itens foram liberados uma semana depois", escreveu. "[Também] apreenderam computadores, equipamento científico, partes de minha biblioteca, arquivos
de ensino, identidade e todo o material
de pesquisa para um novo livro."
Uma espiada na área do grupo CAE
dedicada à biologia contestacional
(www.critical-art.net/biotech/conbio)
revela que Kurtz e seu pessoal têm idéias
nada ortodoxas para combater a disseminação das biotecnologias, como uma
"sabotagem biológica difusa". Os textos
condenam táticas como incendiar campos de plantas transgênicas, que tornariam os militantes antipáticos e os cientistas simpáticos, e dão preferência a coisas como soltar moscas geneticamente
modificadas em laboratórios que fazem
pesquisa com elas, de modo a torná-la
inútil (por causa da contaminação).
Diante da paranóia antiterrorista que
se espalha nos EUA, é o caso de perguntar se tais métodos são assim tão radicais.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro: A conexão Sol-Terra Índice
|