|
Próximo Texto | Índice
+ciência
CONFLITO DE INTERESSES NA UNIVERSIDADE PÓS-ACADÊMICA
Elise Amedola - 22.mai.2003/Associated Press
|
Especialistas apresentam uniformes do futuro na abertura do Instituto de Nanotecnologias para Soldados do MIT, que tem a missão de aperfeiçoar trajes de combate |
Especialista da
Universidade Tufts,
nos EUA, denuncia uma
crescente promiscuidade
entre cientistas e
entidades financiadoras
de experimentos
|
Sheldon Krimsky
especial para a "New Scientist"
O físico e especialista em armas Theodore Postol passou boa parte dos últimos 12 meses no
centro de uma polêmica acirrada. Em meados
dos anos 90, a Agência de Defesa Antimísseis
do Pentágono testou alguns sensores especiais desenvolvidos pela empresa TRW. Os sensores foram projetados para distinguir entre ogivas nucleares e ogivas falsas, do tipo que um inimigo poderia utilizar como chamarizes. Naquela época, assim como agora, os cientistas da TRW disseram que o desempenho dos sensores
superou as expectativas.
Tendo examinado as medidas originais, Postol discorda da avaliação. Ele afirma não apenas que os testes
originais foram falhos, mas que um setor do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT), para o qual ele
próprio trabalha, deixou de expor essas falhas quando o
Departamento de Defesa o encarregou de analisar os resultados dos testes. O MIT e a TRW negam as acusações, e o MIT iniciou uma investigação interna.
Sejam quais forem as conclusões do inquérito interno, o conflito de interesses é evidente. Os cientistas de empresas que testam tais tecnologias não usam viseiras
mágicas que os impeçam de enxergar o significado comercial de suas descobertas para as empresas que os
empregam. E pesquisadores do MIT que avaliam um
estudo do Pentágono não podem apagar da consciência
o financiamento que o MIT recebe do Pentágono.
Não importa quem acabe tendo sua posição confirmada nesse caso específico, o fato é que a ciência que
supostamente confirma as alegações originais feitas
com relação aos sensores jamais poderia ser descrita como desinteressada.
Cientistas, de modo geral, continuam a não levar muito a sério a idéia
de que vínculos de financiamento distorcem seu trabalho
Interesses em alta
À medida que aumentam os vínculos entre interesses comerciais e atividade acadêmica,
a chamada pesquisa desinteressada diminui em toda a
gama de atividades científicas. A atividade comercial é
algo que sempre existiu nas universidades norte-americanas, mas, no passado, os tipos de empreendimento
com fins lucrativos vistos pela maioria das universidades como aceitáveis eram limitados por regras que levavam em conta os objetivos distintos de instituições acadêmicas e comerciais.
Por sua parte, muitas
grandes empresas evitavam formar parcerias
com universidades, porque não havia garantias
de que seriam protegidos
o sigilo comercial e os direitos de propriedade intelectual dos frutos dessas
pesquisas. Tudo isso mudou, entretanto, a partir
de uma série de medidas
governamentais e incentivos à formação de parcerias que foram introduzidos na década de 1980.
Apesar disso, os cientistas, de modo geral, continuam a não levar muito a sério
a idéia de que vínculos de financiamento distorcem seu
trabalho. John Ziman, membro da Royal Society (Reino
Unido) e estudioso dos sistemas sociais da ciência, escreveu recentemente que, na universidade moderna
(que ele descreve como a universidade "pós-acadêmica"), a pesquisa desinteressada deixou de ser viável ou
necessária para proteger a objetividade científica.
Apesar disso, diversos estudos começam a confirmar
a existência de um chamado "efeito financiamento". Na
última semana de agosto o "Journal of the American
Medical Association" (jama.ama-assn.org) publicou
provas de que testes clínicos aleatórios têm probabilidade maior de apresentar resultados favoráveis à intervenção se tiverem sido financiados por organizações
com fins lucrativos. No início do ano, o mesmo periódico publicou uma metaanálise de 37 testes que chegou à
conclusão de que "os estudos patrocinados por empresas têm probabilidade significativamente maior do que
estudos não patrocinados por elas de chegar a conclusões favoráveis ao patrocinador".
Periódicos científicos, associações profissionais e universidades estão, cada vez mais, adotando a transparência como antídoto universal contra tudo isso. Cientistas
e periódicos científicos que deixam de divulgar riscos
de conflitos de interesse são repreendidos. Em agosto,
teve início uma discussão em torno de um artigo publicado na "Nature Neuroscience" (www.nature.com/
neuro) sobre as terapias antidepressivas. O autor principal do artigo, Charles B. Nemeroff, fez uma revisão favorável de um método que utiliza um adesivo que difunde lítio através da pele, além de duas outras terapias.
Mas o periódico não revelou o interesse financeiro do
autor nas terapias, fato que gerou críticas por parte de
outros pesquisadores.
Alguns periódicos científicos se recusam a publicar
artigos de revisão escritos por autores que possuem vínculos financeiros com seu tema. Essa é, a meu ver, a
abordagem correta. A divulgação apenas legitima a prática de misturar comércio e ciência e, implicitamente,
torna mais aceitável a queda geral no nível de pesquisa
desinteressada.
Além disso, ela também entra em choque com a maneira como a sociedade trata conflitos de interesses em
assuntos de âmbito público. Imagine um juiz revelando
que possui um interesse acionário na penitenciária privada para a qual condena
e envia um criminoso a
cumprir pena e que, ao
aumentar dessa maneira
o salário modesto que recebe do governo, estaria
também servindo melhor
o interesse público.
Questão de confiança
Em lugar de nos contentarmos com a mera divulgação, precisamos adotar
princípios que evitem a
ocorrência de conflitos de
interesse. O papel daqueles que produzem conhecimento científico deve ser mantido separado daqueles
que podem se beneficiar financeiramente desse conhecimento. Os cientistas nos quais confiamos para avaliar
substâncias tóxicas, terapias, drogas, bens de consumo
-ou mesmo novos sistemas de defesa antimísseis-
não devem sair do mesmo pool de especialistas que têm
interesse financeiro no êxito ou no fracasso desses produtos.
Qualquer coisa aquém disso levará, com o tempo, ao
declínio irreparável da confiança que o público deposita
na ciência e na medicina. Os cientistas acabarão por ser
vistos como apenas mais um grupo de interessados no
meio da disputa entre partidos que buscam controlar a
informação em defesa de seus interesses próprios. Há
mais ou menos 60 anos o sociólogo da ciência Robert
Merton escreveu que a pesquisa desinteressada é uma
das quatro normas da ciência. Ele tinha razão -e precisamos trazê-la de volta.
Sheldon Krimsky é professor da Universidade Tufts, em Massachusetts (EUA), e acaba de lançar o livro "Science in the Private Interest"
(Ciência no Interesse do Privado, editora Rowman & Littlefield)
Tradução de Clara Allain
Próximo Texto: Lançamentos Índice
|