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Usos e abusos da desconstrução do quantum
Marcelo Gleiser
especial para Folha
Sem a menor dúvida, o mundo dos átomos é muito
diferente do nosso. As três primeiras décadas do século 20 foram marcadas por uma combinação de debates angustiados e idéias geniais propostas por um grupo
de cientistas que incluía Werner Heisenberg, Niels
Bohr, Erwin Schrödinger, Max Planck, Albert Einstein,
entre muitos outros. A angústia vinha da crise pela qual
passava a chamada física clássica, que, apesar de tão eficiente na descrição das coisas que ocorrem à nossa volta, era praticamente inútil para explicar o que ocorria com os átomos. Pode-se dizer que a revolução quântica,
o resultado dessas várias idéias geniais, foi imposta contra a vontade dos físicos, uma revolução provocada pelo
desenvolvimento de tecnologias e técnicas de laboratório que permitiram a exploração de toda uma nova realidade física, invisível aos nossos olhos. Esse ponto é muito importante: na história das ciências naturais, a
maioria das revoluções foi causada pela descoberta de
novas tecnologias e instrumentação.
A revolução quântica, devido à sua excentricidade,
causa grandes confusões de interpretação, especialmente quando os seus conceitos são usados fora de
contexto. Para explicar os resultados obtidos no laboratório, os pioneiros da física quântica criaram toda uma
nova linguagem, apropriada ao que ocorre em sistemas
de dimensões atômicas e subatômicas.
Por exemplo, o elétron não é descrito como uma partícula de posição bem determinada no espaço ou como
uma onda com uma posição indeterminada no espaço,
mas como sendo potencialmente partícula e onda: a
realidade física do elétron e de todas as outras partículas
de matéria e radiação é determinada pelo ato de observar. Quem determina se o elétron é partícula ou onda é
o observador, na medida em que ele interage com o elétron. De fato, antes de o elétron ser medido, ou seja, antes da interação entre o observador e o observado, não
se pode nem dizer que o elétron existe. No mundo
quântico, entidades só existem quando medidas por
um observador (ou melhor, por um aparelho).
É fácil ver como a dualidade partícula-onda pode ser
distorcida fora de contexto. Por exemplo: "Ah! Então,
sem observadores, a realidade não existe. Mais ainda,
como a realidade é definida pelo observador por meio
do ato de observar, e como o observador carrega consigo a sua própria subjetividade, a essência fundamental
da realidade é subjetiva, dependente do observador."
A consequência direta dessa interpretação é pôr o homem no centro do cosmo, ao menos na medida em que
somos aqueles que têm consciência do que significa observar: a realidade física passa a ser consequência de
nossa existência. Pior ainda: como cada observador define a própria realidade, é impossível termos uma realidade universal. Tudo passa a ser ameno a interpretações, a desconstruções subjetivas do mundo e dos seus
significados. A própria ciência se torna vítima do seu
sucesso: afinal, se o seu objetivo é descrever a realidade
e essa realidade é subjetiva, devem existir tantas ciências
quanto há observadores. A ciência se torna inútil.
Outra consequência interessante da má interpretação
da física quântica é que ela implica um holismo, uma
conexão entre tudo o que existe, entre as nossas mentes
e o Universo, desde as suas partículas mais fundamentais até as galáxias mais distantes. Inevitavelmente, esse
holismo é visto como uma dimensão espiritual da física,
uma redescoberta de ensinamentos antigos, em particular aqueles das religiões orientais.
Mesmo físicos, como Fritjof Capra, caem vítimas dessa tentação. O problema com esses abusos do quantum
é usar conceitos aplicáveis a uma realidade que existe
em dimensões de bilionésimos de metro a situações do
nosso cotidiano, que é completamente removido da
realidade quântica. As regras que regem as nossas interpretações do que é um elétron ou de como ele se comporta em um átomo são completamente irrelevantes
para explicar como nos relacionamos com o mundo à
nossa volta, como o nosso cérebro obtém e registra informação desse mundo ou como decidimos agir em
nossas vidas. Elétrons não explicam neurônios ou decisões morais que tomamos no decorrer de nossas vidas.
Para aprender sobre o mundo, é necessário se aproximar dele. A espiritualidade que vejo na ciência está nessa aproximação, no constante processo de desvendar
algo de novo sobre a natureza, nesse levantar dos véus.
É nessa ressonância que reside o mistério, na agonia da
dúvida e no êxtase da descoberta.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College,
em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu".
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