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O REDUZIDO DIMORFISMO SEXUAL DA ESPÉCIE HUMANA PODE TER 3 MILHÕES DE ANOS, SUGEREM RESTOS DE 9 A 30 AUSTRALOPITECOS ENCONTRADOS NUM ÚNICO SÍTIO DA ETIÓPIA
IGUALDADE ENTRE OS SEXOS
Reprodução/Banco de Dados
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Esqueleto 40% completo de "Lucy", fêmea de Australopithecus afarensis descoberta nos anos 70 na Etiópia, cujas proporções serviram de base para estudo
Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha
Eis um dado fundamental de biologia humana,
tão corriqueiro que ninguém costuma prestar
atenção nele. Escolha ao acaso um homem e uma
mulher adultos e compare a massa corporal dos
dois. Na média, você não vai encontrar mais que 15% de
diferença entre os membros desse casal aleatório.
É difícil imaginar que essa proporção aparentemente
tão natural pudesse ser diferente. Contudo, basta dar
uma boa olhada nos machos e fêmeas de alguns dos parentes mais próximos da humanidade, os gorilas (Gorilla gorilla) e os orangotangos (Pongo pygmaeus), para
ver que as coisas poderiam ser bem mais desiguais, afinal: machos enormes, com até o dobro do peso de suas
companheiras.
Não é à toa que a vida sexual desses primatas está a
anos-luz de ser igualitária. Os gorilas e orangotangos do
sexo masculino são verdadeiros sultões, arrebanham o
maior número possível de fêmeas só para si próprios e,
em geral, não toleram outro macho adulto nas vizinhanças do seu harém.
Alguma coisa aconteceu, no meio do caminho evolutivo que levou ao Homo sapiens, para que machos e fêmeas se tornassem menos desiguais, mais cooperativos
e, talvez, mais monogâmicos. Tudo indicava que esse
era um fenômeno muito recente na família humana
-até agora. A análise estatisticamente impecável do
que restou de indivíduos da espécie Australopithecus
afarensis, à qual pertencia a famosa fêmea "Lucy", sugere que a igualdade sexual começou há mais de 3 milhões de anos na linhagem dos hominídeos, desbancando o que parecia ser um dos poucos fatos seguros
da paleoantropologia.
"Decidimos investigar isso justamente porque parecia ter se tornado um fato estabelecido ao longo dos
anos", conta o paleoantropólogo Owen Lovejoy, 60, da
Universidade Kent State, no Estado norte-americano
de Ohio. Um dos problemas, explica ele, é que poucas
coisas são mais difíceis do que estabelecer o sexo de uns
poucos pedaços de osso fossilizado -formato no qual,
via de regra, são encontrados esses hominídeos antigos.
Achar, para cada espécime fragmentário, os ossos da
pelve (que, em humanos modernos, costumam dar as
melhores pistas sobre o sexo do dono do esqueleto), só
com um milagre.
Macho sempre maior
"Como em primatas o macho
é quase sempre maior, o que as pessoas faziam era simplesmente pegar os fósseis maiores e concluir que aqueles eram os machos, e [pegar] os menores e atribuí-los a
fêmeas", explica Lovejoy. "Acontece que desse jeito você perde toda a variação de tamanho que pode aparecer
entre eles. E há também a variação que existe geograficamente ou temporalmente -alguns espécimes podem estar separados por centenas de milhares de anos."
Como se não bastasse esse grau quase inaceitável de
incerteza, o mais comum é encontrar cacos anatômicos
que não são diretamente comparáveis, como uma mandíbula aqui e um fêmur ali. Com tanta complicação, não
é de admirar que a estimativa mais citada de dimorfismo sexual (expressão que os cientistas empregam para
designar a variação de tamanho ou características entre
machos e fêmeas) tenha usado uma amostra de apenas
três supostas A. afarensis.
Os pesquisadores buscaram uma saída dessa bagunça
paleontológica escolhendo, logo de cara, um grupo de
australopitecos do sítio A.L. 333 que foi preservado numa espécie de cápsula do tempo natural. Todos morreram juntos há 3,2 milhões de anos, no que parece ter sido um único evento catastrófico (provavelmente uma
enchente) à beira de um lago em
Hadar, hoje localizado na Etiópia. O número estimado
de indivíduos que deram adeus às savanas da África
Oriental nessa tragédia varia de 9 a 30, mas o importante é que todos parecem pertencer ao mesmo grupo e à
mesma época e, portanto, compartilhariam o mesmo
tipo de dimorfismo sexual.
Permanecia, contudo, o velho problema da falta de
pedaços anatômicos comparáveis. O jeito de contorná-lo foi pedir auxílio à boa e velha Lucy, cujo esqueleto está 40% completo e oferece dados únicos sobre as proporções corporais dos australopitecos.
O truque do fêmur
Sabe-se que a cabeça do fêmur
(parte arredondada desse osso da coxa que se encaixa
na pelve) fornece uma estimativa confiável de massa
corporal. O truque, portanto, foi usar os fêmures dos espécimes que os possuíam e, quando não fosse esse o caso, calcular que tamanho ele teria com base na proporção entre um osso e outro achado no esqueleto de Lucy.
Para se certificar de que isso funcionava mesmo, Lovejoy comparou os índices que achava com os de primatas vivos -humanos, chimpanzés e gorilas de ambos
os sexos.
"OK, nós não sabemos quantos ali eram machos ou
fêmeas, mas sabemos que todos tinham seu sexo", pondera Lovejoy. "Por isso, nós testamos estatisticamente
todas as possibilidades, de uma fêmea e 29 machos a 29
fêmeas a um macho. Fizemos a série inteira, dos menores aos maiores."
Deu trabalho, mas nem precisava, de acordo com o
paleoantropólogo: não importa onde os pesquisadores
traçassem a linha divisória macho-fêmea, o resultado
estatístico era praticamente o mesmo, indicando um nível baixíssimo de dimorfismo: 10% quando eram contados apenas os hominídeos do A.L. 333, 15% quando
outros A. afarensis de outros lugares entravam na dança. São proporções rigorosamente humanas.
"Até poderíamos estimar a altura ou a massa deles
quando vivos, mas isso implica uma série de pressuposições um pouco incertas. Se eu tivesse de estimar qual a
altura deles, daria cerca de 1,20 m para as fêmeas e 1,35
m para os machos", explica Lovejoy, cuja pesquisa foi
publicada na edição de 5 de agosto da revista científica
"Proceedings of the National Academy of Sciences",
mais conhecida como "PNAS" (www.pnas.org).
É quase certo, portanto, que Lucy não fosse só mais
uma fêmea de harém. Mas permanece a possibilidade
de que a igualdade sexual gerasse não casais de australopitecos, mas bandos mistos e a promiscuidade generalizada que caracterizam os chimpanzés (Pan troglodytes), as criaturas vivas mais próximas da humanidade, cujo genoma coincide em 95% com o do homem,
e que também se caracterizam pela diferença pequena
de tamanho entre machos e fêmeas.
Lovejoy, no entanto, aposta na monogamia por causa
de outro tipo de dimorfismo: o tamanho dos caninos
dos machos, que são quase iguais aos das fêmeas no A.
afarensis, mas muito maiores entre os chimpanzés. Caninos muito grandes são uma arma e tanto e servem
principalmente para disputar fêmeas -sinal de que os
australopitecos eram menos competitivos e tinham
uniões mais estáveis.
Parentes chimpanzés
"As pessoas tendem a achar
que, como os chimpanzés são os nossos parentes genéticos mais próximos, os hominídeos primitivos deveriam ser versões antiquadas de chimpanzés, mas não é
bem assim", argumenta Lovejoy. "O mero fato de eles
serem bípedes e viverem no chão deve ter tornado seu
sistema social e seus hábitos alimentares marcadamente diferentes." E não é só isso, salienta o pesquisador:
enquanto os chimpanzés modernos ocupam algumas
áreas isoladas de mata tropical, os australopitecos parecem ter sido um grupo bem mais comum e bem-sucedido evolutivamente, espalhando-se por toda a África
Oriental e Meridional.
"Para conseguir isso, eles precisavam de uma estratégia reprodutiva diferenciada, na qual provavelmente os
machos competiam menos entre si e as fêmeas preferiam os menos agressivos, que se dispusessem a ajudar
no cuidado com o prole", especula Lovejoy. Para Clark
Spencer Larsen, da Universidade do Estado de Ohio, a
falta de ambos os dimorfismos nos australopitecos
apóia a conclusão de Lovejoy: "O A. afarensis e outros
hominídeos tardios podem ter sido mais parecidos com
o homem em seu comportamento social básico. Assim,
as raízes do comportamento humano podem ser profundas no tempo".
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