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SOBREVIVENTES
Imigrantes japoneses relembram a guerra 59 anos depois e relatam as dificuldades no tratamento médico
Brasil abriga vítimas da bomba atômica
DÉBORA YURI
DA REVISTA
"Sabe o que me salvou? Um furúnculo. Estou viva até hoje graças a ele", conta Ayako Morita, 79.
Ela fala baixo, em japonês. E explica: tinha 20 anos, morava em
Hiroshima, seu trabalho era verificar a qualidade dos alimentos
que os aviões norte-americanos
lançavam sobre o território na Segunda Guerra. Boa parte das provisões, dizem, vinha envenenada.
Há 59 anos, em 6 de agosto de
1945, Ayako deveria ir para a sede
da empresa, mas o furúnculo fez
com que o supervisor lhe recomendasse ficar na filial. Às 8h15
daquele dia, um B-29 lançou a
primeira bomba atômica da história sobre a cidade -a 500 m da
sede. Ayako estava a 1.200 m.
Os 700 m de distância fizeram
dela uma das sobreviventes da
bomba, um contingente de pessoas que passou a vida inteira pagando as conseqüências da exposição à radiação atômica. Imigrante japonesa para o Brasil na
década de 50, Ayako integra um
subgrupo ainda mais prejudicado: o das vítimas que, por viverem
fora do Japão, precisam voltar
constantemente para fazer check-ups e tratamentos adequados.
Na mesma Hiroshima, "do outro lado da cidade", o policial militar Takashi Morita, 80, levava 13
colegas a um local para construir
um abrigo para armamentos. Tinha 21 anos e caminhava a 1.300
m do hipocentro, o local onde a
bomba caiu, quando escureceu.
"A seguir, vi diversas cores na
minha frente, como um arco-íris.
Uma escola de dois andares desabou como caixa de fósforo sendo
amassada. Fui atirado a 10 m, senti um calor muito forte, percebi
que minhas costas queimavam."
Então começou a chuva negra,
ele relata. "Ouvi o ronco de um
avião B-12 e pensei que estavam
atirando óleo para botar fogo na
população. Ninguém sabia o que
era aquilo. Pensei: "Como o homem pode ter tanta maldade?". Vi
uma multidão andando com
queimaduras, o couro cabeludo
derretido, a pele do braço pendurada, os músculos da perna estourados. A cidade estava vermelha,
todos pediam água."
Ayako e Takashi se conheceram
alguns anos depois, na Hiroshima
pós-bomba atômica. Ele tinha
aberto uma loja de relógios, perto
da farmácia da família dela. O Japão era outro: um país pobre e
destruído pela guerra. Então os
dois, recém-casados, com dois filhos, decidiram embarcar numa
viagem de 42 dias num navio.
"Alguns conhecidos diziam: "O
Brasil é bom, vocês vão enriquecer lá". Muitos japoneses acreditaram, basta ver o tamanho da colônia japonesa", brinca Takashi, dono de uma loja de alimentos japoneses em São Paulo. Em 1984, ele
fundou a Associação das Vítimas
de Bomba Atômica no Brasil, com
17 associados. Hoje, são 135.
A bomba matou cerca de 140
mil pessoas em Hiroshima, e calcula-se que mais de 340 mil tenham sido expostas diretamente
à radiação. Até hoje, quase seis
décadas depois, essa exposição
ameaça a saúde e o bem-estar de
sobreviventes e descendentes. Entre os efeitos estão quelóides (tecidos inchados, semelhantes a cicatrizes e tumores), leucemia, câncer e microcefalia dos fetos.
Os riscos tornam a vida dos sobreviventes que deixaram o Japão
mais difícil. O governo japonês
oferece tratamento gratuito para
as vítimas da bomba, além de dois
check-ups anuais. Japoneses que
vivem no Brasil podem requerer
esse direito. Takashi calcula que
mais de 30 já tenham recebido
ajuda de custo para fazer exames
ou tratamento com especialistas
de Hiroshima. Isso inclui passagens aéreas e despesas médicas.
Mas Takashi luta para que o tratamento seja feito no Brasil e pago
pelo governo japonês. "Uma viagem de 24 horas é muito cansativa
para gente de nossa idade, e é difícil um idoso se dispor a ir sem
acompanhante. Só que o governo
não paga essas despesas", diz.
Para ele, o tratamento poderia
ser feito aqui, com médicos do
hospital Nipo-Brasileiro, ou com
o envio mais regular de especialistas em radiação do Japão. "Eles
vêm ao Brasil a cada dois anos ver
as vítimas, verificam se precisam
de tratamento especializado."
Segundo o cônsul-geral adjunto
do Japão no Brasil, Soichi Sato, o
governo japonês está empenhado
em ajudar todas as vítimas das
bombas, onde quer que elas morem. "O governo tem ajudado os
sobreviventes no exterior. Uma
missão do Ministério da Saúde inclusive veio ao país neste ano, tentar um acordo com a Associação
das Vítimas no Brasil", afirma.
"Naquela manhã"
Então sargento do exército japonês, Seitsu Imakawa, 86, tinha
27 anos em agosto de 1945. Acabara de retornar para Hiroshima
depois de um tempo na Manchúria, onde o Japão lutava contra a
China; era recém-casado, a mulher vivia em outra cidade. Estava
a 5 km do hipocentro, quando ouviu sirenes avisando que aviões
americanos se aproximavam.
"Corri ao quartel para me refugiar. Ouvi o ronco de um avião, e
então houve um estrondo: me escondi de outras bombas, achando
que seria um bombardeio "normal", mas elas não foram lançadas", ele conta, lendo uma folha
de papel escrita em japonês. "Fiz
umas anotações para relatar corretamente o que aconteceu."
Seitsu lembra que, devido ao calor, se atirou num tanque de água.
"Quando pus a cabeça para fora,
meu corpo estava molhado e,
mesmo assim, o colarinho de minha farda pegou fogo. Meu rosto
ardia muito. Quando olhei em
volta, a cidade estava destruída."
Nas ruas, muita gente corria
"com queimaduras indescritíveis". Seitsu passou a ajudar os feridos. "O estoque de medicamentos e gaze acabou, então tivemos
de tirar as faixas dos mortos para
colocar nos que sobreviviam. Depois de duas horas, homens de
outras cidades chegaram para
ajudar; foi quando ouvimos falar
em radiação atômica."
Ele lembra que desmaiou e
acordou num hospital, com moscas pelo corpo. "A essa altura, minha maior preocupação era sobreviver. Assim, suportei a dor",
diz Seitsu, que veio para o Brasil
com a mulher no início dos anos
60. Aqui, foi agricultor, teve dez
netos, e hoje é aposentado. O ex-sargento conta que dois de seus
quatro filhos têm problemas de
malformação devido à radiação.
"Sinto que sou mais frágil que o
normal, pego doença facilmente",
diz o comerciante Teruo Hosokawa, 77, que vive em São Paulo e todo ano viaja a Hiroshima para fazer check-up. "Recebi reembolso
do governo japonês duas vezes."
Aos 18 anos, era recruta no interior, abastecendo os soldados do
Exército, e entrou em Hiroshima
no dia 10 de agosto, com 17 colegas, para ajudar no socorro aos feridos. No ano passado, foi visitá-los no Japão; só quatro estão vivos. "Sofri muito com a radiação a
vida inteira, mas mesmo assim
sinto que ganhei uma nova vida.
Por isso, vim para o Brasil."
Nagasaki
A segunda bomba atômica da
história foi lançada pelos americanos em Nagasaki, três dias depois da de Hiroshima, às 11h02,
matando cerca de 70 mil pessoas.
Kiyotaka Iwasaki, 71, sobrevivente da bomba de Nagasaki que
vive em São Paulo, teve câncer. O
tumor foi retirado no Japão. "No
ano passado, fui fazer check-up.
Descobriram 19 pedras no meu
rim e as tiraram. Agora estou
bem", afirma, bem-humorado.
"A radiação é uma coisa terrível.
Com 27 anos, quando me casei,
meus dentes sangravam e caíam
de repente. Eu desmaiava, sentia
fraqueza, via tudo em preto, branco, preto", conta ele, que tem uma
filha e desembarcou no Paraná
em 1953, sozinho.
No dia 9 de agosto de 1945, Kiyotaka tinha 11 anos -era um garoto em férias escolares de verão.
Brincava no mar quando viu um
avião- não sabia se era americano ou japonês. Estava a 12 km do
hipocentro. Voltou para casa e
não encontrou ninguém. Correu
ao esconderijo antibombas, ficou
tranqüilo: lá estavam a mãe e a irmã. O pai lutava na China. "Só à
noite, vi a cidade queimando."
Quase seis décadas depois das
duas únicas bombas atômicas
lançadas, Kiyotaka considera ter
vivido "mais do que uma vida".
"Falavam que os sobreviventes teriam só dois anos, mas olhe para
mim. A gente nunca sabe. Ter vindo para o Brasil foi muito bom.
Agora, a guerra é cruel demais.
Não deixe de escrever isso", ele
pede, arriscando palavras num
português "japonesado".
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