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SAÚDE
Médicos apontam necessidade de tratamento com terapia e antidepressivos; doença atinge 5% das crianças no mundo
Depressão infantil ainda é encarada como exagero
LULIE MACEDO
DA REVISTA
No início parecia manha. André*, 9, deu para fazer escândalo e
evitar a escola. "Não tenho força",
dizia, chorando. Não queria brinquedos, TV nem amigos. Brigava
à toa, tudo o irritava. "É fase, coisa
da idade", pensava a mãe, Márcia*. Ou falta do pai, de quem se
separou há dois anos. Até que, na
escola em que dá aulas, recebeu
uma ligação de casa, à noite:
- Mãe, volta agora? Estou triste,
com vontade de morrer.
Márcia se assustou. Levou André à psiquiatra. Saiu de lá com
uma prescrição médica quase tão
incomum quanto papo de morte
em boca de criança: terapia e dez
gotas diárias de antidepressivo.
"Quando conto isso, as pessoas
sempre acham absurdo. Primeiro
se espantam porque não acreditam que a doença possa aparecer
em crianças, depois dizem que
dar antidepressivo para um menino de nove anos é exagero."
Embora a depressão tenha perdido parte do estigma, ao menos
duas crenças continuam fortes:
que se trata de mal exclusivo da
maturidade e que suas raízes estão no estresse dos tempos modernos. Quanto a esta última afirmação, o problema é quase tão
antigo quanto o homem. E as estimativas calculam em 5% as crianças deprimidas no mundo.
Reconhecida no meio médico
há apenas 20 anos, a depressão infantil é uma variação da adulta,
com características e sintomas
parecidos, mas que ainda permanece um mistério para pais, professores e boa parte dos médicos.
A americana FDA (agência que
regula alimentos e remédios) alertou sobre o risco de o antidepressivo fazer aflorar tendências suicidas no início do tratamento, especialmente em crianças e jovens.
É um ponto quase ignorado: o
mundo do Prozac chegou à infância, mas com os mesmos antidepressivos usados por pais e avós.
Ninguém sabe, no Brasil, quantas
crianças estão sendo medicadas,
mas sabe-se que cresce o número
de deprimidos infantis graves.
"Nem me assustei quando a psiquiatra falou que ela ia tomar antidepressivo, daria qualquer coisa
para tirar minha filha daquele sofrimento", conta a empresária Luciana*, mãe de Daniela*, 10, há
dez meses com depressão grave.
É comum ainda os pais se sentirem culpados. "Os pais devem saber que filho deprimido não é resultado de defeitos deles nem necessariamente reflexo de falta de
habilidade para educar", diz o escritor Andrew Solomon, portador
de depressão grave e autor de um
estudo premiado sobre a doença.
Desde o berço
A doença afeta até os bebês -se
manifesta fisicamente, com alterações na coordenação motora,
distúrbios do sono, falta de apetite, apatia e choro constante. A
queixa física também surge em
crianças maiores, mas, diferentemente dos adultos, ela fica nervosa e agitada, em vez de triste.
Acredita-se que a depressão é
provocada por uma somatória de
fatores, que inclui temperamento,
experiências de vida e, cada vez
mais, predisposição genética. Mas
as dúvidas se estendem até a profissionais de saúde. Quando Márcia foi pedir licença de trabalho
para cuidar de André, o clínico-geral a olhou com desconfiança:
"Como é possível um menino de
nove anos estar com depressão?".
A questão é que, na cabeça de
adultos, tristeza e infância não
combinam. "Basta você se lembrar da sua infância. Quem nunca
se preocupou em ser aceito pelo
grupo, recuperar nota vermelha
ou corresponder às expectativas
dos pais?", diz a psiquiatra infantil
Paramjit T. Joshi, coordenadora
da divisão de psiquiatria do Children's National Medical Center,
um dos principais hospitais pediátricos dos EUA.
E como separar a mudança típica da idade da patológica? "Uma
forma é comparar a mudança de
comportamento com o que era
anteriormente a criança", sugere
Lee Fu I, do departamento de psiquiatria infantil do Hospital das
Clínicas paulistano. "Se a criança
era extrovertida e de repente se
isola, pode haver um sinal."
Lidera a lista de situações familiares que "disparam" uma crise
depressiva a briga dos pais, seguida por perdas (de pessoas, animais, coisas) e situações que expõem a criança a questões que sua
faixa etária não consegue entender: problema financeiro da família, separação paterna, solidão e
necessidade de se virar sozinhas.
Mas há o gatilho químico, uma
"falha" no equilíbrio dos neurotransmissores das sensações de
prazer e bem-estar. Essa falha seria transmitida geneticamente,
ativada por fatores externos.
Ou seja: predisposição genética
conta, mas deve haver combinação entre a parte biológica, temperamento e experiência de vida.
A escola é fundamental no diagnóstico. "Quase sempre há queda
no rendimento escolar no quadro
depressivo, principalmente em
disciplinas que exigem atenção,
concentração e memorização",
diz a psicóloga Miriam Cruvinel,
doutoranda pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Importam também os pediatras
e médicos de família, já que as
queixas físicas sem causa comprovada estão entre os sintomas
freqüentes da depressão infantil.
Para a psiquiatra Lee Fu, o médico de família é o alvo do alerta
da FDA. Como o sistema de saúde
dos EUA é estruturado em torno
deles (nem sempre preparados
para diagnosticar a depressão infantil), eles acabam receitando
antidepressivos sem calcular o
risco de efeitos indesejados.
Medo
Até profissionais de saúde mental ainda têm medo de falar sobre
suicídio com a criança e os pais.
"O remédio não põe idéia suicida
onde ela não existe. Mas se aquilo
já está lá, latente, o antidepressivo
pode trazer à tona", diz Lee Fu.
Mark Riddle, chefe da divisão
de psiquiatria de crianças e adolescentes do hospital Jonhs Hopkins (EUA), também defende a
medicação: "A maioria dos efeitos
colaterais ocorre no início do tratamento, e uma hipótese para isso
é que a energia física costuma se
restabelecer antes do intelecto,
portanto o paciente pode acabar
recuperando vitalidade suficiente
para tomar uma atitude, caso já
exista uma idéia suicida."
Mas é preciso dizer que, sem
tratamento, a doença deixa marcas a longo prazo. "A criança está
em formação, e, se parte da infância é eclipsada pela depressão, ela
se torna propensa a incorporar
para sempre esse estado de humor", diz Andrew Solomon.
* Nomes trocados para preservar os personagens infantis
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