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SP 450
Nascido na Itália, músico veio para o Brasil com quatro anos e morou no bairro Ipiranga quando museu era cercado por mato
Uma sanfona para São Paulo
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Ele nasceu em Veneza, é autor
da música mais conhecida do
Pantanal, criou o hino do 4º Centenário de São Paulo e do ""4º Centenário e Meio", é considerado
um dos sanfoneiros mais importantes do Brasil, poderia ter sido o
avô de Sandy e Junior e, de quebra, mexeu seus pauzinhos para
ser enterrado ao lado de seu ídolo
maior, a marquesa de Santos.
Teve razão a Prefeitura de São
Paulo ao decidir dar uma comenda a Mário Zan na cerimônia da
virada 2003/2004, já como parte
das comemorações dos 450 anos
da cidade: aos 83 anos, o acordeonista, com suas contradições e
multiatividades, é o retrato definido da cidade, um paulistano mais
do que honorário.
Ao começo da história, então,
conforme conta à Folha agora este senhor de voz profunda e olhos
tristes que preferiu dar entrevista
na Redação em vez de em sua casa, no prédio da esquina da avenida São João com a praça Júlio
Mesquita que um dia já foi loja do
Mappin -na portaria do jornal,
uma senhora de seus 60 e poucos
anos o reconheceu e cobriu-o de
elogios; saiu com um CD autografado. ""Ela disse que era minha fã
há 50 anos."
Tudo na vida de Mário Zan é
contado em décadas ou metades
de século, como se verá.
Moleque da sanfona
Mário João Zandomeneghi é
italiano de Veneza, onde nasceu
em 1920. Quando tinha quatro
anos, seus pais o trouxeram para
o Brasil. Seu José trabalhava em
olaria e vinhedo, dona Ema era
""do lar"; foram morar em Santa
Adélia, perto de Catanduva (SP).
Aos 12 anos, já tocador de acordeão bom o suficiente para ganhar a alcunha ""Moleque da Sanfona", mudou-se para as imediações do Museu do Ipiranga.
Os anos seguintes -como vizinho de nomes tão ilustres quanto
D. Pedro 1º e Santos Dumont-
de certa maneira marcaram sua
vida. Das capas dos discos, que
quase sempre trariam uma referência ao bairro, aos temas de
músicas. ""Quando chegamos era
tudo mato à volta e no meio o museuzão, imponente", lembra.
""Morávamos numa casinha, eu e
sete irmãos e meus pais."
Aos 13, estreou como sanfoneiro profissional. Desde então, os
números são eloquentes: nos 70
anos seguintes, comporia cem
músicas (das quais pelo menos
um terço seria regravado por gente como Roberto Carlos e Almir
Sater), registraria 200 canções,
300 discos de 78 rotações, 110 LPs
e mais de 50 CDs. ""Comecei gravando em cera, ali onde era a gravadora Continental, na praça Pérola Byington", afirma. ""De lá para cá, gravei em tudo que foi meio
que foi inventado, do compacto
simples ao disco digital."
O primeiro meio de comunicação que conheceu sua sanfona foi
o rádio -Mário Zan é pré-televisão. Foi na Record, quando a
emissora ficava na esquina da rua
Quintino Bocaiúva com a rua Direita, no centro, no mesmo prédio
onde depois a editora de músicas
Irmãos Vitale fez sua sede. ""Entrei
para pedir para tocarem minhas
músicas, saí de lá 33 anos depois,
esse tempo todo empregado com
carteira registrada."
Nessa época, um locutor ouviu
a batida inconfundível de Zan nos
teclados e ficou encantado. Em
seu programa de rádio do Rio de
Janeiro, deu a bronca: ""Enquanto
nós cariocas ficamos babando para os gringos, ouvindo música estrangeira e imitando, existe um
sanfoneiro em São Paulo que faz
verdadeira música brasileira". O
nome do locutor era Ary Barroso
(1903-1964), o criador de ""Aquarela do Brasil".
"Nova flor"
Um de seus maiores sucessos
até hoje é ""Nova Flor", mais conhecida como ""Os Homens Não
Devem Chorar" (""Dizem que um
homem/ Não deve chorar/ Por
uma mulher/ Que não soube
amar"), gravada por pelo menos
200 intérpretes em toda a América Latina (há uma versão em espanhol mais conhecida do que a
original) mais países da língua inglesa (""Love Me Like a Stranger")
e até na Alemanha, onde Howard
Carpendale a ""eternizou" na língua de Goethe.
Mas Mário Zan talvez fique para
sempre conhecido como o sujeito
que compôs o hino dos 400 anos
de uma cidade e meio século mais
tarde criou uma música em homenagem aos 450 anos da mesma
cidade -São Paulo, claro. Além
do feito cronológico, ""Quarto
Centenário" é também um "case"
que a indústria fonográfica nacional gosta de contar.
Com 10 milhões de cópias até
hoje, o disco em 78 rpm com o hino vendeu mais exemplares em
1954 do que havia vitrola no Brasil. Só nos primeiros meses, foram
1 milhão de bolachas da música,
que começa com ""São Paulo, meu
São Paulo, São Paulo quatrocentão", com sanfona -óbvio- e
uma marcação forte de baixo-tuba. ""Fazia um "pom", "pom" que
pegou logo."
Zan tinha 33 anos então e nem
sonhava em estar por aqui nos
450 anos. ""Mas, já que eu estava, e
já que esta cidade me deu tanto,
resolvi arriscar e fazer outro hino." A música não foi adotada oficialmente, mas valeu da prefeitura um convite para que o sanfoneiro recebesse o título de cidadão honorário na virada de 2003
para 2004, em cerimônia na avenida Paulista. E outro CD, que já
está à venda.
O curioso é que não é de São
Paulo que vem o grosso de seu faturamento, mas de umas terras
encharcadas bem longe daqui. No
caso, o Pantanal mato-grossense,
onde Mário Zan é tratado como o
Luiz Gonzaga do atoleiro. Sua
""Asa Branca" é ""Chalana", hino
nacional da região, que ganhou o
resto do país em 1990, ao virar tema da novela ""Pantanal", da extinta TV Manchete.
""Lá vai uma chalana/ Bem longe
se vai/ Navegando no remanso/
Do rio Paraguai", começam os
versos, referindo-se às pequenas
embarcações típicas do lugar. Na
verdade, quando compôs a música, em 1940, em parceria com Arlindo Pinto, o sanfoneiro nunca
tinha colocado os pés ali, o que só
veio a fazer anos e anos depois, já
em excursões que levavam multidões a seus shows.
A fama lhe valeu, nos anos 50,
um namoro arrebatador com
uma bonita menina da região,
que durou seis anos e acabou deixando saudade, pelo menos em
Zan. Pois a moça era dona Mariazinha, que
viria a se casar
com o cantor
sertanejo Zé
do Rancho;
os dois teriam
Noely,
que se casaria
com Xororó e
geraria Sandy Leah Lima e Durval
de Lima Júnior. ""Se o mundo não
tivesse dado voltas, eu poderia
hoje ser o avô de Sandy e Júnior",
brinca.
Não que ele se queixe. Segundo
números publicados em reportagem do site de economia InvestNews, em 2002, que o próprio fez
questão de não negar nem confirmar, Mário Zan vende em média
600 mil discos por ano, a maioria
durante as festas juninas; faz entre
cinco e seis shows por mês, a R$ 5
mil cada um; e recebe entre R$
500 e R$ 600 por mês de direitos
autorais. ""Isso é uma miséria, culpa da roubalheira que domina este nosso mercado", reclama.
"Marquesa de Santos
Mas nada parece tirar do sério o
suave sanfoneiro, casado pela terceira vez, pai de três filhos e duas
filhas, exceto o assunto marquesa
de Santos, ao qual se dedica há
cinco anos. ""É uma injustiça a fama que essa mulher tem no Brasil", exalta-se. ""Ela foi uma alma
pura, que antes de morrer doou
toda a riqueza que tinha, dividiu
os bens entre seus escravos e a cidade de São Paulo, não dá para ela
entrar para a história como
"amante de dom Pedro 1º"."
Lendo um livro sobre a vida de
Domitila de Castro Canto e Mello
(1797-1867), a polêmica marquesa
de Santos, que teve um "affaire"
com o então imperador do Brasil,
Mário Zan descobriu que ela estava enterrada no cemitério da
Consolação. Resolveu visitar o túmulo. ""Cheguei lá, estava tudo em
petição de miséria, tinha despacho de macumba, pichação, muito lixo e até um pé de milho!", espanta-se. ""Mandei limpar tudo,
reformar a lápide e pago uma pessoa para ir lá toda a semana conservar e trocar as flores."
O próximo passo seria realizar
um novo sonho: achar um túmulo à venda próximo ao da marquesa. ""É que, desde que eu fiz isso por ela, minha vida mudou para melhor", revela, místico. Não
foi fácil. Disputado, o cemitério,
cujo terreno aliás foi doado pela
própria Domitila, aloja os restos
de gente como Monteiro Lobato e
Mário de Andrade.
Até que um amigo de um amigo
conseguiu: um lugar bem em
frente ao da marquesa, na quadra
1, na rua principal, a da capela.
Agora, Mário Zan já sabe que vai
passar a eternidade em boa companhia. ""Mas não tenho pressa",
avisa. ""Ainda quero fazer outros
hinos para São Paulo."
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