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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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DROGAS

Estudo mostra que viciadas, no desespero para comprar a droga, recorrem às ruas sem se importar com a prevenção de doenças

Crack empurra mulheres à prostituição

ALESSANDRO SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

"Eu tenho nove filhos e estou esperando o décimo. Conheci um cara no ponto. Aí aconteceu. Quando fui ver, já não descia mais e estou grávida de novo. É... a criança é de um programa, eu nem sei quem é o cara. Vou ser a mãe dele, e o pai é Deus."
Paulistana, 30 anos, T. é personagem de um drama urbano pouco conhecido até agora. Dependente de crack, ela acabou nas ruas, não como prostituta comum que troca sexo por dinheiro e pensa em prevenir-se com camisinha, mas como uma pessoa escravizada e incapaz de medir consequências quando no auge da necessidade de ter a droga.
A história de T. e de outras 79 "crackeiras" fazem parte de um estudo inédito no país feito pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), da Universidade Federal de São Paulo, financiado pelo Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Nacional de DST/ Aids, e que deve ser divulgado oficialmente neste mês.
Diferentemente do que se pensava, o uso da droga, que se dá fumando a pedra em um tipo de cachimbo, e não injetando como outras, não é tão seguro em relação ao risco de contágio pelo vírus da Aids nem menos danoso para a sociedade, segundo a coordenadora da pesquisa, a psicofarmacóloga Solange Nappo, 51.
Pior, diz Nappo, por não terem sido descobertas antes, essas mulheres não foram atingidas pelas estratégias clássicas de prevenção. Falta instrução a elas sobre o risco de algumas formas de sexo. "Oral eu sempre faço sem camisinha", afirma uma das entrevistadas.
Pelo risco que correm, ganham no máximo R$ 50. A maioria sai por menos de R$ 20 -suficiente para duas pedras-, até por R$ 5.
Mais da metade (59%) tem menos de 30 anos e possui filhos (61%). "Evitar filhos parece ser algo distante dessas mulheres, e o aborto é praticado como solução", afirma Nappo. A pesquisa não analisou quantos filhos foram gerados por meio desses programas nem a situação das crianças.
E nada se sabe ainda sobre os homens que pagam pelos programas, a quem, segundo elas, cabe decidir se o preservativo será ou não usado. "Quando tô virada [sob efeito da droga" e o cara não coloca, não tô nem vendo", diz uma das entrevistadas.
O Cebrid espera que o resultado ajude a criar programas específicos para essas dependentes.
Por se basear em entrevistas, a pesquisa não estimou o número de crackeiras. As mulheres foram localizadas em São Paulo e em São José do Rio Preto (440 km da capital). Quatro delas disseram ser portadoras do HIV e que, apesar disso, continuavam nas ruas.
No Brasil, o crack está mais presente no Sudeste, com mais intensidade em São Paulo, além da região Sul. O Rio fica de fora, porque o tráfico não aceita o crack.

Círculo
O primeiro estudo sobre o crack no país, feito em 94 pelo Cebrid, mostrou que o usuário médio era jovem, homem e de uma classe social mais baixa. Nada se detectou sobre as mulheres.
Na "fissura" -desejo da droga-, os dependentes acabavam envolvidos em furtos e roubos. Não há estimativa no Brasil, mas, na Inglaterra, viciados em heroína e em cocaína estão envolvidos em 32% da atividade criminal.
Segundo a literatura internacional, as mulheres dependentes seguiam outro caminho: a prostituição. Um estudo realizado em Miami (2000), citado pelo Cebrid, mostrou que, de um total de 851 crackeiras entrevistadas, 708 (83,2%) se prostituíam para ter a droga. Foi essa tendência, ainda não explorada no país, que provocou a pesquisa do Cebrid.
Para entender o problema, é preciso analisar dois pontos: a dependência em relação à droga é rápida -de um a dois meses de uso, segundo Nappo- e o custo do vício é elevado. "Com o tempo, é preciso usar cada vez mais para sentir a mesma coisa. Consequentemente, é preciso fazer mais programas para obter a mesma quantidade de droga", diz Nappo.

Consumo diário
Em média, os dependentes gastam de R$ 50 a R$ 100 por dia. Das entrevistadas, 93% disseram consumir crack diariamente. "Eu trabalhava, mas o dinheiro que eu ganhava só dava pra pagar o aluguel, o gás, essas coisas. Precisava de dinheiro e não tinha. Foi aí que comecei a fazer programa", afirma uma das mulheres ouvidas.
Na fissura pela droga, 62% disseram se prostituir todo dia, chegando a ter nove parceiros diferentes em uma única noite. A duração do programa é de no mínimo cinco minutos, em que algumas são agredidas, esfaqueadas e até estupradas. Os depoimentos coletados impressionam.
O ambiente em que vivem é o pior possível. Há depoimentos que mostram os traficantes incentivando a prostituição -para elas, a "venda" do corpo não é crime. Um homem viciado teria de roubar para pagar a dívida de droga, arriscando-se a ser preso.
As entrevistas também revelaram descaso de autoridades. "Eu estava com dois caras em um carro. Aí, vizinhos chamaram a polícia e eles tiveram de dar o som do carro pra polícia senão todo mundo seria preso porque eu era menor", afirma uma entrevistada.


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