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GILBERTO DIMENSTEIN
Lula é traidor ou candidato a estadista?
Na semana do Dia do Trabalho, a principal notícia foi
a entrega ao Congresso pelo presidente Lula de um projeto que, ao
mexer nas aposentadorias do setor privado e, especialmente, na
do serviço público, retira direitos
dos trabalhadores.
Não se tem notícia de um presidente brasileiro, mesmo no regime militar, que tenha tido a ousadia de contrariar uma parcela
dos trabalhadores, tirando-lhe
vantagens, exatamente na semana em que seus direitos são comemorados. A situação torna-se
ainda mais inusitada porque a
medida de corte dos benefícios foi
levada pessoalmente ao Congresso por Lula, primeiro presidente
brasileiro que saiu das fábricas.
Para alguns, essa reviravolta indicaria o descompromisso do PT
no geral e de Lula em particular
com batalhas históricas, numa
incoerência traidora. Falava-se
que FHC teria dito a seguinte frase: "Esqueçam o que escrevi". Lula conseguiu ir mais longe: pediu
que esquecessem o que ele assinou. Divulgou-se, na terça-feira
passada, um abaixo-assinado
subscrito por ele contra o corte de
benefícios aos aposentados, medida considerada imoral naquele
documento dos tempos em que o
PT era oposição.
A grandeza do momento está no
desenho de um pacto nacional, liderado por Lula e acima dos partidos -talvez apenas alguém
egresso das fábricas e que tivesse
passado a vida defendendo privilégios corporativos, medidas econômicas pouco realistas e demagógicas, ganhasse autoridade para enfrentar os trabalhadores sem
ser escorraçado.
O pacto é baseado em uma
idéia tão simples quanto poderosa: se não gastar melhor seus recursos, investindo mais em produção, saúde e educação, o Brasil
não vai conseguir crescer e gerar
empregos. A elite política está
convencida de que a febre de juros, que inibe quem deseja produzir, é uma consequência da infecção do desperdício de dinheiro
público; é o preço a pagar pela voracidade do Estado.
Operar o desmonte do desperdício de recursos públicos, protegidos por privilégios no Estado, para deixar a sociedade mais leve de
juros e de impostos é, de longe, a
questão mais relevante para os
brasileiros. Lula percebeu que
desse desmonte depende a chance
de progresso brasileiro e, claro, a
sua sobrevivência política.
O cansaço é motivado por estatísticas como as que foram divulgadas na semana passada, que
mostraram aumento do desemprego nas regiões metropolitanas.
Ninguém sabe ao certo quando se
conseguirá inverter essa tendência que joga os indivíduos na miséria, esmigalha o auto-respeito
de chefes de família e faz das cidades campos de batalha.
Rio de Janeiro e São Paulo, os
dois Estados mais importantes do
Brasil, estão doentes. No Rio, a
sensação é que a polícia perdeu a
guerra para o crime organizado
-e até se cogita de fazer uma intervenção federal. E se Garotinho
falhar? Será despedido por sua
mulher, Rosinha? Se chegar a esse
ponto, provavelmente já não existirá a governadora Rosinha.
No mesmo dia em que Lula fazia, com a comitiva de ministros e
governadores, procissão ao Congresso, eram revelados novos indicadores da violência em São
Paulo. Nunca se apreenderam
tantas armas de fogo, cresce velozmente a quantidade de pessoas mortas pela polícia, mas o
roubo não pára de aumentar. No
primeiro trimestre, os roubos registrados chegaram a 59.220 casos. Ou seja, 27 casos por hora, a
maioria na região metropolitana.
Com esse nível de desemprego entre jovens, não existe polícia, mesmo eficiente, que funcione.
A propagação da violência, que
provoca a sensação de orfandade,
de viver sitiado, acuado, demarcou os limites de funcionalidade
de uma comunidade. O poder público sente-se pressionado, de um
lado, a melhorar as polícias e, de
outro, a derramar bilhões em
ações para evitar que o indivíduo
descambe para a violência. Um
estudo da Unesco, divulgado na
terça-feira passada, informa o tamanho do desafio e a demanda
por mais e mais bem utilizados
recursos públicos para assegurar
ao jovem a chance de entrar no
mercado de trabalho. Apenas um
dado: 1,3% das escolas têm acesso
à internet. E mais: em muitas das
que o têm, o professor tem ojeriza
a informática ou não sabe utilizá-la em sala de aula.
Pouco fará efeito melhorar a escola, criar bolsas de complementação de renda, combater a fome,
se não estiver em alta o emprego,
o melhor e mais eficaz de todos os
programas sociais -o que vai depender, em parte, da coragem da
elite política de lutar contra privilégios travestidos em direitos e de
racionalizar os gastos.
Daí que Lula está, neste momento, mais para candidato a estadista do que para traidor dos
trabalhadores. Se, entretanto,
não gerar empregos, esse ousado
rigor fiscal será lembrado pelos
trabalhadores, justa ou injustamente, não como um sinal de coragem, mas como uma traição.
PS - A melhor notícia social da
semana se deve ao pior fato. Uma
comissão formada por Unicef,
Andi, Abrinq e OIT denunciou a
existência, no Brasil, de 500 mil
crianças que vivem quase como
escravos trabalhando em serviços
domésticos. Uma menina de idade entre cinco e nove anos, empregada doméstica, ganha, em média, R$ 13 por mês. A boa notícia é
que, pela primeira vez, se articula
uma campanha para enfrentar o
trabalho infantil doméstico.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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