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SAUDOSO SUBÚRBIO
Freqüentado pela realeza no século 16 e por sambistas a partir dos anos 60, Inhaúma sofre efeitos da violência no Rio
Tráfico reina em bairro que já foi da nobreza
SÉRGIO RANGEL
DA SUCURSAL DO RIO
Nascido como aldeia de índios
tamoios no século 16, o bairro carioca de Inhaúma já foi terra da
nobreza real -onde a princesa
Carlota Joaquina veraneava- e
da nobreza do samba -subúrbio
onde moravam bambas como Pixinguinha, Nelson Cavaquinho e
Elza Soares. Mas hoje tornou-se
cenário de bangue-bangue.
Inhaúma -que em tupi quer
dizer corrente barrenta e é também nome de uma ave escura-
atraiu a boemia musical carioca a
partir dos anos 60, com a construção da Cidade do Som. Eram prédios planejados pela Ordem dos
Músicos do Brasil para assegurar
casa própria a sambistas com talento inversamente proporcional
a sua renda.
O bairro na zona norte, a 19 km
do centro do Rio, cresceu como
área industrial no final do século
19. Famílias nas calçadas até a madrugada, rodas de samba por toda
a noite e crianças nas ruas faziam
parte da rotina do subúrbio carioca até a década passada.
O que restava de tranqüilidade
acabou nos últimos quatro anos,
desde que traficantes se instalaram na Fazendinha, área incorporada pelo vizinho complexo de favelas do Alemão.
Terra sem lei
Tiroteios, assaltos e roubos de
carros influenciaram o fechamento de fábricas, como a da cervejaria Skol, e de uma das duas agências bancárias do bairro.
Depois das 22h, os moradores
se submetem a um toque de recolher informal. Há três anos, por
causa da violência, a prefeitura
isentou grande parte dos 12 mil
domicílios de Inhaúma do pagamento de IPTU (Imposto Predial
e Territorial Urbano).
Em um sábado à tarde, há nove
dias, oito pessoas foram atingidas
por tiros de fuzil quando traficantes do Alemão tentaram matar
um motorista de Kombi na avenida Ademar Bebiano.
""Foi a pior coisa que presenciei.
A padaria estava cheia e parecia o
fim do mundo", disse Vânia Galvão, 63, que passava pelo local no
momento do ataque.
""Depois de ser assaltado três vezes em menos de dois anos, não
volto mais para casa depois das
23h. Como gravo muito, durmo
no estúdio e só volto no dia seguinte", conta o produtor musical
Milton Manhães, que trabalhou
nos primeiros discos dos sambistas Zeca Pagodinho, Jorge Aragão
e Almir Guineto e mora em uma
das ruas que dá acesso ao complexo do Alemão.
""Até pouco tempo, eu, o Zeca
[Pagodinho] e a Jovelina [Pérola
Negra] batucávamos até o dia seguinte na porta da minha casa.
Mas a boêmia e o pagode acabaram por aqui", diz Manhães.
Decadência
Titular da 44ª DP, a delegacia do
bairro, Luiz Antônio Ferreira reconhece: "A situação é cada vez
pior", diz ele. O desânimo do delegado é comprovado pelos números oficiais da Secretaria Estadual de Segurança Pública. A área
integrada de segurança número 3,
que inclui Inhaúma, tem criminalidade superior à da área da Cidade de Deus.
No mês passado, a taxa de roubos na área 3 foi de 128,8 por cem
mil habitantes, contra 109 na área
número 19, que engloba a Cidade
de Deus e regiões de Jacarepaguá,
na zona oeste. A taxa de apreensão de armas foi de 18,8 por cem
mil, contra 9,85 na área 19. A de
roubo de carros chegou a 45,9 por
cem mil habitantes, mais do que o
dobro da taxa da área 19.
Na rua Padre Januário, a principal de Inhaúma, várias lojas estão
fechadas ou com os donos dispostos a passar o ponto. ""Isto aqui está o fim do mundo. Há uns cinco
anos, tinha que expulsar as pessoas para fechar o bar às 2h. Agora, fico correndo risco com as
portas abertas até as 23h, mas ninguém aparece. Estou tentando
passar o negócio há mais de um
ano e ninguém quer comprar",
disse um dono de restaurante,
que prefere o anonimato por temer represálias de traficantes.
Os moradores contam que a
noite é dominada por tiros de fuzil e pelos bondes -comboios armados de criminosos. Só os policiais se aventuram nas ruas. A
madrugada mais tensa é a de terça-feira, dia do baile funk freqüentado por traficantes da Fazendinha, que circulam armados
e vendem drogas na praça.
"Sabemos, mas não vamos lá
porque pode acontecer uma tragédia muito grande se houver
confronto", diz o delegado.
No início de julho, o banco Santander fechou a sua agência em
Inhaúma, que ficava perto da entrada da Fazendinha. O galpão da
antiga fábrica da Skol foi ocupado
por famílias sem moradia.
Área rural até o início do século
20, o bairro dobrou sua população com a industrialização. A fábrica de tecido Nova América,
instalada em Del Castilho, escolheu Inhaúma para construir a
sua vila operária. Nos anos seguintes, várias empresas investiram no bairro.
As poucas indústrias que ficaram reforçaram a segurança. A
Castrol dispõe de câmeras de alta
resolução para vigiar as ruas.
Reza no táxi
"Isto aqui era uma tranqüilidade. Agora não vale nada", diz a
sambista Dona Ivone Lara, que
mora no bairro há 30 anos. ""A minha tristeza é muito grande. Depois dos meus shows, venho rezando no táxi para nada acontecer na minha frente", conta a cantora de 83 anos, autora, em parceria com Délcio Carvalho, do clássico "Sonho Meu".
Ela diz ter saudade das quermesses que eram organizadas no
fim de julho pela igreja de São Tiago e dos bailes de Carnaval na rua
Padre Januário. A violência terminou com as festas.
Outros moradores ilustres deixaram o bairro com medo dos
conflitos. Um deles foi o cantor
Roberto Silva, conhecido como
""príncipe do samba", que morou
na Fazendinha por 78 anos.
"Estava impossível manter a
calma no meio daquela confusão.
Antigamente, andava por lá durante a madrugada e o único medo que tinha era de ver um gambá
ou uma cobra. Agora, o negócio
não está fácil ", afirmou o cantor
de 84 anos, reverenciado por Caetano Veloso e João Gilberto -que
costuma ligar de madrugada para
conversar e lhe pedir que cante ao
telefone.
Silva trocou Inhaúma pelo vizinho bairro de Tomás Coelho e
mora em frente ao morro do Juramento, onde o tráfico era comandado, nos anos 80, por José Carlos
dos Reis Encina, o Escadinha. Ele
diz que a vida melhorou. ""Isto
aqui é uma maravilha. O triste é
que Inhaúma é o meu lugar. Adoro aquilo lá e fico sempre com
muita saudade", disse Silva.
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