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NOVA HISTÓRIA
Pesquisadora afirma que a Inquisição pode explicar a fúria das bandeiras de São Paulo contra os jesuítas
Bandeirantes tinham origem judaica
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Os historiadores nunca primaram pelo equilíbrio ao retratar
Antônio Raposo Tavares (1598-1658), um dos mais mitológicos
bandeirantes. Ou era guindado ao
céu como o "bandeirante magno,
vulto formidável", segundo a descrição de Affonso Taunay, ou era
jogado no inferno como assassino, herege e matador de padres.
A historiadora Anita Novinsky,
professora de pós-graduação na
USP, reuniu documentos encontrados em Portugal segundo os
quais Raposo Tavares teria razões
religiosas para queimar igrejas:
sua madrasta, Maria da Costa, foi
presa pela Inquisição em 1618 sob
a acusação de "judaísmo" e só
saiu do cárcere seis anos depois.
Em 1496, D. Manuel, rei de Portugal, decretou que os judeus deveriam ser expulsos do país. Só
poderiam ficar os que aceitassem
a conversão ao catolicismo, chamados de cristãos novos.
Raposo Tavares foi criado até os
18 anos na casa da madrasta, uma
cristã nova que seguia a tradição
religiosa como "uma judia fervorosa", na definição de Novinsky.
A mãe de Raposo Tavares também era cristã nova.
"Há razões ideológicas na fúria
dos bandeirantes contra a igreja.
Ela representava a força que tinha
destruído suas vidas e confiscado
seus bens em Portugal", diz Novinsky, autora de oito livros sobre
a Inquisição. Raposo Tavares matou jesuítas porque eles eram comissários da Inquisição na América, segundo a historiadora.
Os documentos serão debatidos
no simpósio "O Legado dos Judeus para a Cidade de São Paulo",
em novembro. O simpósio é promovido pelo Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, da USP,
e pelo clube A Hebraica.
Uma outra história
Segundo a nova perspectiva,
Raposo Tavares e bandeirantes
que atacavam igrejas podem ser
vistos como "subversivos", desafiadores da hegemonia católica,
na visão de Novinsky. Entre os
bandeirantes, eram cristãos novos Raposo Tavares, Fernão Dias
Paes e Brás Leme. Baltazar Fernandes, fundador de Sorocaba,
matou com um tiro na cabeça o
padre Diogo de Alfaro, que tinha
sido enviado pela Inquisição para
investigar os paulistas.
"A história do período colonial
precisa ser reescrita", defende. Os
novos documentos mudam as
histórias das bandeiras e do Brasil, de acordo com a historiadora.
Os ataques das bandeiras às reduções, áreas em que os jesuítas
agrupavam os índios para catequizá-los, ocorreram na primeira
metade do século 17. O mais célebre dos ataques foi contra as reduções na região de Guairá, hoje território paraguaio, em 1628. Raposo Tavares teria saído de São Paulo com 900 brancos e 3.000 índios.
Foi nesse episódio que Raposo
Tavares fez a sua confissão de judaísmo, na visão de Novinsky.
Uma carta de Francisco Vasques
Trujillo escrita em 1631 menciona
que, ao ser questionado com que
autoridade moral os paulistas atacavam os índios, ele responde que
era com a autoridade "que lhes
dava os livros de Moisés".
O saldo da batalha para os bandeirantes foi a escravização de
2.000 índios que estavam sendo
catequizados. Com a expulsão
dos jesuítas espanhóis, Portugal
ganhou o território onde ficam os
Estados do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e de
Mato Grosso. A escravização dos
índios acabou consagrando a teoria de que os bandeirantes eram
movidos por razões econômicas.
O historiador John Monteiro,
professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), autor de "Negros da Terra: Índios e
Bandeirantes nas Origens de São
Paulo", diz que os documentos
reunidos por Novinsky mostram
que a razão econômica é insuficiente para explicar os embates
entre colonos e jesuítas. Não há
dúvida de que ambos lutavam pelos índios para usufruir da mão-de-obra barata. Mas por que os
confrontos com os bandeirantes
paulistas foram os mais cruentos?
A questão religiosa pode explicar a ferocidade, afirma Monteiro. É uma peculiaridade da colonização de São Paulo que não se
repete em outros lugares: "Tenho
certeza de que as disputas não
eram só econômicas. Passavam
por alianças de famílias e pela
identidade religiosa".
Fuga para São Paulo
Paulo Prado (1869-1943), o milionário do café e patrono da Semana de Arte Moderna de 1922,
foi o primeiro a mencionar a influência dos judeus na São Paulo
dos séculos 16 e 17. No livro "Paulística Etc." (1925) ele cita atas da
Câmara de 1578 e 1582 que fazem
referências a "judeus cristãos".
O isolamento de São Paulo, segundo Prado, levava judeus de
Pernambuco e da Bahia a migrar
para a cidade: "(...) nenhum outro
sítio povoado do território colonial oferecia melhor acolhida para
a migração judia. Em São Paulo
não os perseguia esse formidável
instrumento da Inquisição, que
nunca chegou aqui".
Prado não sabia à época que
dois cristãos novos que moravam
em São Paulo haviam sido executados pela Inquisição: Theotonio
da Costa, em 1686, e Miguel de
Mendonça Valladolid, em 1731.
No livro que publicou em 1958
sobre Raposo Tavares, o historiador português Jaime Cortesão levantou a hipótese de que o bandeirante era cristão novo e que tivera problemas com a Inquisição.
Onze anos depois, José Gonçalves Salvador, professor aposentado da USP, escreveu o primeiro
artigo sobre cristãos novos em
São Paulo e sobre a origem judaica de Raposo Tavares.
Havia razões sérias para que
cristãos novos escondessem suas
raízes judaicas, diz o historiador
Paulo Valadares, um dos autores
do "Dicionário Sefaradi de Sobrenomes" -sefaradi ou sefaradita é
a forma como são designados os
judeus da península Ibérica.
"A Inquisição foi uma forma de
apartheid. Os que tinham origem
judaica tinham de pagar mais tributos e não tinham acesso a certos cargos", afirma Valadares.
Para ingressar em ordens religiosas ou no exército, o candidato
precisava provar que não tinha
antepassado judeu, árabe, negro
ou índio por até sete gerações.
Para ascender, era necessário
renegar o passado. A prática era
corrente em São Paulo desde sua
fundação, em 1554. Segundo Valadares, a mãe de Anchieta era
cristã nova e seu trisavô foi queimado pela Inquisição.
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