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BRASIL DESCONHECIDO
A 10 km de Barra do Una, Monte de Trigo pode ser avistada de praias como Maresias e Toque-Toque Pequeno
Ilha isola comunidade no litoral norte
CYNARA MENEZES
ENVIADA ESPECIAL AO LITORAL NORTE
Está a duas horas e meia de carro de São Paulo, só que ninguém
lá sabe dirigir. Da areia de praias
do litoral norte, como a calma Toque-Toque Pequeno ou a agitada
Maresias, a ilha Monte de Trigo
pode ser facilmente avistada. O
que poucos sabem é que, há pelo
menos 200 anos, tem gente morando nela.
O Montão, como é chamado pelos continentais, é uma das ilhas
habitadas do litoral norte. Fica a
10 km da praia em Barra do Una,
onde os homens vêm à terra comercializar o peixe. Os moradores vivem da pesca, ainda feita em
canoa, com linha e anzol.
A viagem até lá dura 30 minutos
em uma lancha grande. Não é
possível encostar no cais: a água
rasa e o fundo de pedras só permitem a chegada de uma embarcação pequena. O ancoradouro foi
construído com troncos para a
rolagem das canoas escarpa acima, puxadas por uma corda. O
mar é azul, translúcido.
Aproximando-se sobre as
águas, vem Ítalo, 32, em sua canoa, com algumas lulas que pegou. Ele dá uma carona até a ilha,
mas não fala muito. É magro,
queimado de sol, alguma barba,
narigudo e com a cara encovada
como a de Alfredo, 70, seu tio, que
aparece tímido na janela da primeira casa que se vê, escondida
atrás das árvores.
Todos os 40 moradores são Oliveira. O sobrenome se manteve
através dos anos porque o Montão é uma ilha masculina. As mulheres se casam com homens do
continente e vão embora. As poucas que ficam se unem aos primos. Muitos homens saem, mas
voltam -trazem mulheres consigo, que não aguentam o isolamento e rumam à costa. Forasteiro homem teve só um tal "catarinense", que também escapuliu.
"Eu é que não quis casar com
prima. Os filhos nascem tudo baixinho", diz Rubens, 40, filho de
Alfredo, cuja mulher mora hoje
em Bertioga. Baixinhos nem tanto, mas parecidos: a estirpe de seu
Alfredo tem nariz adunco e feição
quixotesca. Do lado de seu Maneco, 72, o outro ancião, todos são
cheios e com traços indígenas.
As duas filhas de Maria da Conceição, 67, foram morar em Ubatuba. "Não vê aquela formiguinha
que cria asa e voa? Assim é a mulher", filosofa. Natural de Juqueí,
casou com o irmão de Alfredo, e
sua irmã, com o irmão dele. A história dos dois irmãos casados
com duas irmãs acabou se transformando numa versão para a
origem da ilha -para os nativos,
tudo começou assim.
As casas também são semelhantes. Apesar da natureza exuberante e do exotismo de subsistirem
como quando começaram a povoar a ilha, os habitantes do Montão vivem mesmo em condições
precárias. As casas são de compensado, chão e paredes; o teto é
de zinco. Só há banheiros na escola e na igreja evangélica. Há água
encanada de uma nascente.
Falta médico. Há 34 anos, quando a mulher de seu Maneco teve a
caçula dos quatro filhos, sofreu
uma infecção e morreu na metade
do caminho da viagem de barco.
E até hoje é assim. "Sempre que
alguém cai doente, tem que atravessar o mar "brabo'", reclama Fátima, 23, mulher de Ítalo. A última
viagem também é para a costa: os
corpos são enterrados no cemitério de Barra do Una.
Se o peixe escasseia, passam
aperto. "Eles ganham uma cesta
básica da Prefeitura de São Sebastião. Mas ela só vem de vez em
quando", diz a professora Benedita Salgues, 50. Benedita passa o
mês inteiro na ilha, para cada fim
de semana em terra. Além de ensinar, prepara a merenda escolar e
quer alfabetizar os adultos. "Muitos na ilha assinam com a digital."
A agricultura já foi importante
em Monte de Trigo, embora nunca tenha produzido o cereal que
lhe dá nome. No século passado,
produziam café, melado e mandioca, vendidos na costa. Chegaram a ter quatro engenhos de farinha. Hoje, não há mais nenhum.
Os pescadores atribuem o abandono das roças aos ratos, que destroem tudo o que plantam. Os
roedores teriam chegado escondidos nos blocos utilizados para a
construção da escola, inaugurada
pelo governo do Estado em 1986.
Seu Maneco, que já não pesca e
por isso mantém sua roça de subsistência, duvida: "É preguiça".
Quando não há dinheiro para
comprar os mantimentos, volta-se às origens: ao "azul-marinho",
cozido de banana verde com peixe amassado, ou o purê de "cará-de-espinho", amassado no pilão.
E café. Não tem pão, não tem bar.
As crianças não parecem sentir
falta de refrigerantes, mas devoram as bolachas que trazemos.
A menina Carolayne, 6, já decidiu que gosta mais de Ubatuba,
onde moram os primos. "Lá tem
boneca de cabelo comprido", explica. Ela e a irmã, Fabiane, 5, correm descalças pela ilha, puxando
a reportagem pela mão. Seu irmão Wagner, 7, é arredio, como o
pai Ítalo e os demais rapazes.
Foram mais festeiros no passado. Depois que os evangélicos
chegaram, nos anos 80, as tradições de origem católica foram
abandonadas. Havia longos bailes
na época do Natal e reuniões em
volta da fogueira, ao som do violão, no dia de São Pedro.
Os tempos não levaram o correio à ilha, mas quase todo mundo tem um celular. A TV ainda é
pouco vista, porque a energia é
obtida com geradores. E o programa preferido é o noticiário. Se para os ilhéus viver no meio do
oceano não é fácil, morar no continente pode ser pior. "Só tem tragédia", desdenha Eliana, 34.
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