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DANUZA LEÃO
Um amigo
Eu quero ter um amigo que
não saiba de nenhuma dessas coisas que todo mundo acha
que tem de saber. Que aprecie um
bom prato, mas que não tenha
conhecimentos sobre a alta gastronomia e que nunca tenha ouvido falar no restaurante El Bulli.
Esse homem deve ser tão mal informado que nem sabe que existem pessoas que pagam a outras
pessoas para escolher móveis,
quadros, tapetes, objetos e lençóis
da casa onde vão morar.
Na sala desse homem devem
existir apenas uma estante, um
sofá e uma poltrona forrados do
mesmo tecido, talvez um abajur
de pé e um piano com uma flanela sobre as teclas. Não que ele saiba tocar, é apenas o piano da família que foi ficando porque ninguém mais quis (e quando alguém passa levanta a tampa e
pressiona uma ou duas teclas assim, para nada, no máximo toca
o bife). Faz bem ter um piano numa casa.
Ele nunca terá ouvido falar de
nenhuma grife ou marca de relógio, mas conhece o vento, sabe
quando o tempo vai mudar e sabe
também quando alguém está alegre, triste ou com medo, que seja
gente ou bicho.
Eu quero um amigo que identifique o aroma das flores e não o
dos perfumes dos frascos, que
ache bonito uma mulher com
quadris largos e seios fartos e que
dê valor à bondade. Um amigo
capaz de ficar muito tempo calado, olhando o mar ou a mata, ouvindo os ruídos da natureza e o silêncio, que conheça as estrelas pelo nome e que sempre, antes de se
deitar, vá olhar o céu para saber
se no dia seguinte vai chover ou
fazer sol.
Um amigo de quem os bichos e
as crianças gostassem logo à primeira vista, que chegasse sempre
na hora certa -que não seria
nunca a mesma-, e que fosse
embora na hora que tivesse que
ir, só por sensibilidade. Um amigo
cuja presença trouxesse calma e
harmonia, e perto de quem não se
teria medo de nada, nem de
quando falta luz, nem de cobra,
nem da maldade dos homens.
Eu quero ter um amigo, só um,
que não saiba o nome de nenhum
vinho, mas que de vez em quando
tome uma bebida muito forte;
que nunca tenha ouvido falar de
trufas, nem brancas nem pretas,
que não saiba quais são os homens mais ricos do mundo da revista "Forbes" e que às vezes chegasse com um peixe enrolado
num jornal, um peixe bem fresco
que ele não resistiu e comprou,
para ser feito no forno regado por
um honesto azeite português, como antigamente.
Esse homem teria um sorriso
muito franco e muito doce e muito bom, daqueles em que você
acreditaria por saber que é de verdade; ele seria uma pessoa de
quem nunca, nunca se desconfiaria, até porque ele nunca mentiu
nem fingiu, porque nunca teve
nenhuma razão para isso. Aliás,
pensando bem, por que será que
as pessoas mentem e fingem?
Esse homem teria um carro
meio velho, um só suéter e um só
paletó para os dias mais frios e teria poucos amigos, mas amigos
que contariam com ele incondicionalmente. Ele entenderia da
alma humana sem nunca ter lido
Freud, não seria ligado em datas
e conheceria um pouco de botânica sem nunca ter estudado, só
porque acha a natureza uma coisa muito interessante, mais do
que quase tudo.
Eu quero um amigo capaz de
me surpreender, e que às vezes se
surpreendesse com minhas bobagens. Eu quero ser muito amiga
desse homem, quero uma amizade em que não haja competição
de futilidades, um dizendo que
conhece uma aldeia no interior
da Tanzânia, o outro rebatendo
com um acampamento no Quênia, um falando do caviar fresco
do Irã e o outro de um hotel seis
estrelas que só pouquíssimos conhecem, porque essas conversas
são muito cansativas e sempre
iguais.
Ah, como eu queria ter um amigo assim; e se ele fosse mais do que
um amigo, melhor ainda.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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