São Paulo, quinta-feira, 11 de setembro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

O senador, o pau-de-arara e o teleatendimento


E ficamos com a impressão de que as palavras, as frases, os discursos, as afirmações, as indagações não valem nada

QUEM VIU O ANTOLÓGICO filme "O Enigma de Kaspar Hauser" (do alemão Werner Herzog) certamente se lembra do "teste da verdade" a que o protagonista é submetido. Um sábio diz a Kaspar que numa determinada estrada há uma bifurcação: um caminho vem do país da verdade; o outro, do país da mentira. "Para saber de que lugar vem uma certa pessoa, que pergunta você lhe faria?", indagou o sábio.
Kaspar pensou e disse que perguntaria simplesmente o seguinte: "Você é um sapo?". O sábio não aceitou a solução de Kaspar, a qual é exemplo de "reductio ad absurdum" ("redução ao absurdo"). Não vou dizer que tipo de pergunta os cânones da lógica exigem nessas situações.
Prefiro deixá-lo curioso, isto é, sugiro-lhe que veja o filme, encontradiço na internet, nas locadoras etc.
Com os dois parágrafos iniciais, eu quis chegar ao xis do problema: o que se deduz ou se pode deduzir de certas afirmações, perguntas etc.
Vou dar um exemplo mais "real" do que o vivido por Kaspar. Dia desses, travei uma inútil e insana batalha com um atendente de uma operadora de TV a cabo. Explico: há quatro meses, um de meus filhos ligou para a empresa, a fim de cancelar o serviço. O motivo era simples: a concorrente oferecia preço melhor.
Conversa vai, conversa vem, veio a proposta: "Cobrimos o preço, e o senhor se livra do incômodo de desinstalar, reinstalar etc.". Meu filho aceitou. Nas três faturas subseqüentes, tudo como combinado: o preço tinha caído. Na quarta, o valor voltou ao inicial. Coube-me a inglória tarefa de telefonar para a operadora. Trocentos minutos e menus depois, consigo falar com alguém, que me diz que a redução tinha sido dada por três meses. Digo que não; que a redução era definitiva. O rapaz insiste, e começa uma conversa de doido.
Lá pelas tantas, digo que está bem, que meu filho é um imbecil etc. e pergunto se o desconto não pode ser prorrogado. O rapaz diz que não.
Pergunto por quê, e ele me diz que eu já tinha tido o desconto. Digo-lhe então que aquilo me permitia deduzir que o assinante só recebe desconto da empresa uma vez na vida.
Ele diz que não, que não foi isso o que quis dizer. "Então como é que se prorroga o desconto?", pergunto.
"Não posso prorrogar, porque o desconto já foi dado e por três meses", papagueou ele, para minha exasperação. Lembrei-me de M. Quintana ("A burrice é invencível") e desisti.
Nesta semana, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) e o diretor afastado da Abin Paulo Lacerda protagonizaram um batibarba numa sessão da Comissão de Controle de Atividades de Inteligência. Disse Virgílio a Lacerda (que já foi diretor-geral da Polícia Federal): "Eu não sou seu preso, não. Estou aqui como parlamentar. (...) Não me trate como se eu estivesse pendurado em algum pau-de-arara, porque não estou". Que se pode deduzir do que disse o senador da República? No mínimo, que (ainda) há (ou havia...) tortura na PF. É isso, senador? Então, se Vossa Excelência sabe disso, espera-se que aja sem detença. Proponho-lhe que proponha uma lei que exija a instalação de câmeras em todas as dependências policiais do país...
Por lhaneza, distração ou falta de vontade de polemizar, Lacerda preferiu dizer que compreende a indignação do senador, "mas gostaria que Vossa Excelência compreendesse a minha". E ficamos todos com a impressão de que as palavras, as frases, os discursos, as afirmações, as interrogações não valem nada. É isso.

inculta@uol.com.br


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