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ESCOLA DA VIDA
Sesc ensina português e cultura brasileira a emigrantes que fugiram de guerras e tragédias humanitárias
Refugiados aprendem a sobreviver no Brasil
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
Com ar provocador, o aluno
dispara em um português hesitante: "Professora, o que quer dizer c...?" Rosângela Portela, 46, a
professora, entendeu de imediato.
O estudante, um jovem negro anglófono da África Ocidental, agora desterrado, estava testando-a.
"Eu respondi sem piscar. Repeti
pausadamente a palavra e a traduzi para o inglês. Expliquei que
se tratava de um palavrão que
pessoas bem educadas não deveriam pronunciar. Perguntei, então, se ele havia compreendido",
lembra a professora.
O rapaz, que nunca havia visto
uma professora (em seu país só
homens desempenham a função),
que junto a isso nunca ouviu uma
mulher "direita" se referir aos genitais masculinos, fez que sim e
teve, dessa forma, sua primeira
aula de cultura brasileira.
O episódio ocorreu na semana
passada, em uma sala de aula no
Sesc (Serviço Social do Comércio), no centro da cidade de São
Paulo, onde começava mais um
curso de português para refugiados de guerras e tragédias humanitárias, dentro de um programa
de aculturação com o Brasil. Na
ocasião, o jovem acabava de completar dez dias no país.
Um dentre 3.000 refugiados já
reconhecidos pelo governo brasileiro, ele tem o perfil típico da categoria. É negro, sexo masculino,
idade entre 20 e 30 anos, fugiu de
guerra ou massacre na África,
veio de navio, embarcado clandestinamente.
O jovem desafiador passou 13
dias no porão de um petroleiro de
bandeira panamenha. Apavorado, com medo de ser descoberto
(outro clandestino foi flagrado
pela tripulação e desapareceu), ele
chegou a ficar um dia inteiro mergulhado num tanque de óleo, apenas a cabeça para fora.
A assistente social Denise Orlandi Collus, 38, que cuida do programa para refugiados do Sesc,
explica tamanho cuidado. "Entre
os refugiados, contam-se histórias de clandestinos lançados ao
mar porque os capitães das embarcações receavam ter de arcar
com o sustento e eventual repatriação desses fugitivos.
Destino incerto
Desterrados por guerras inacreditáveis, que elevaram a tortura, a
mutilação e o estupro à condição
de métodos de combate, os 26
alunos da professora Rosângela já
se consideram vencedores -"Estamos vivos, em um país pacífico
e acolhedor", diz Baimba Conteh,
28, de Serra Leoa, sobre o Brasil.
Brasil que, diga-se, nenhum dos
que veio de navio escolheu como
lar. "A maioria não sabe sequer
qual o destino da embarcação em
que entram. Eles imaginam estar
indo para os EUA ou Europa. Só
quando ancoram percebem que o
ponto final da viagem foi bem diferente", explica Luiz Varese, representante para o Brasil do Alto
Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados, a Acnur.
Expressando-se em inglês (a
maioria), ou francês e espanhol, a
atual leva de refugiados tem como
primeira missão aprender português. "É incrível a velocidade do
aprendizado deles", diz a professora, que também leciona português para executivos.
A maior facilidade desses africanos com o português, a professora atribui ao fato de eles serem expostos desde crianças a muitos
sistemas lingüísticos: "Eles têm de
saber a língua do antigo colonizador e a língua tribal própria. Nos
países islamizados ou em via de,
têm de saber ainda rudimentos
do árabe usado nas rezas."
Ao chegar, pedem refúgio ao
governo brasileiro. Enquanto a
história de cada um é analisada
(só casos de violação aberta dos
direitos humanos ensejam a concessão do refúgio), eles recebem
carteira de trabalho provisória e
CPF. Então são encaminhados à
Cáritas, uma organização não-governamental de assistência e proteção aos refugiados, que patrocina o convênio com o Sesc. Podem
trabalhar, recebem alojamento e
alimentação subsidiada, além de
auxílio em dinheiro.
Adaptação difícil
A adaptação dos meninos é difícil. A professora lembra-se de um
aluno nigeriano que viveu dias de
euforia na chegada. "Depois de
um mês, ele entrou em depressão
severa. Percebeu que estava sozinho [perdeu todos os vínculos
com parentes na África], que obter trabalho era complicado. Tivemos de ampará-lo seriamente."
Outro aluno envolveu-se com
drogas e chegou a prestar alguns
serviços como traficante para a
máfia nigeriana que atua no centro de São Paulo. "Fizemos de tudo para que ele participasse de
grupos de música, de teatro, além
de ajudá-lo a arrumar trabalho",
diz a professora.
O envolvimento de nigerianos
com o narcotráfico piora a vida
dos jovens refugiados. Freqüentemente confundidos com os traficantes, eles têm dificuldade extra
na hora de arrumar um emprego.
"É preconceito. Esses meninos,
quase todos, viram a família ser
assassinada, têm uma história de
dor e sofrimento e ainda são discriminados", diz a assistente social Denise Collus. "Os traficantes
não se apresentam à polícia federal para obter o status de refugiados e documentos brasileiros. Isso [a identificação] só serviria para torná-los mais facilmente localizáveis -tudo o que o traficante
não quer."
Por precaução, Cezira Furtin,
57, coordenadora do Centro de
Acolhida para Refugiados da Cáritas, organiza encontros de refugiados, duas vezes por semana,
em que orienta os jovens sobre os
direitos e deveres no Brasil. "É
uma aula em que, basicamente,
dizemos a eles: "Presta atenção,
rapaz.'
No Sesc, a professora Rosângela
esforça-se para fazer os refugiados entender o país que os acolheu. "Passo para eles e discuto
uma série de documentários sobre o povo brasileiro, sua formação e índole. É incrível ver os
olhos deles se iluminarem ao perceber o tanto que a África impregna a vida brasileira", diz.
Na semana passada, os alunos
da professora foram levados até o
teatro da Pontifícia Universidade
Católica, no bairro de Perdizes,
para assistir a "Turistas & Refugiados", peça sobre o drama dos
desterrados.
Eles riram muito na cena em
que o ator Carlos Moreno falava
sobre as fantasias sexuais de um
turista em férias, um momento
delicioso do roteiro. Na hora, porém, em que os atores interpretavam os refugiados do título da peça, fecharam-se os semblantes
dos meninos.
Todos os atores brancos, representados com famílias e malas,
trajando figurinos antiquados
lembrando europeus em fuga do
nazismo, eram o retrato em negativo dos jovens que os assistiam
-solitários, chegados sem malas
nem suvenires. "Mas o buraco
que ficou na vida deles, imagino,
deve ser o mesmo que eu sinto",
dizia ao fim do espetáculo um aluno congolês, que fugiu depois de
ter o pai assassinado e a mãe seqüestrada (ela até hoje está desaparecida). Primogênito em uma
família numerosa, o rapaz sabia:
"O próximo seria eu."
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