|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SAÚDE
Entidades que reúnem vítimas e familiares de várias patologias conseguem vitórias como acesso gratuito a medicamentos
Pacientes organizados têm mais benefícios
AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL
Viver ou morrer depende não
só da doença que se pega, mas
também do "lobby" que se organiza em torno dela. O nível de gravidade e de letalidade das patologias costuma depender igualmente do grau de organização dos
seus pacientes e familiares.
Às vezes, esse critério chega a
ser mais cruel e discriminatório
do que a própria doença. Os familiares dos cerca de 2.000 pacientes
de fibrose cística diagnosticados
no país estão organizados em 20
associações, em 20 Estados. Estão
conseguindo a sobrevida de seus
filhos com medicação cara obtida
por pressões no Ministério da
Saúde e ações na Justiça. A fibrose
cística é uma doença genética que
ataca crianças brancas.
As vítimas da anemia falciforme
-outra doença genética e que
chega a atingir até 2,5 crianças em
mil- não têm nenhuma associação nacional que as represente e
mal lutam pelo direito ao teste do
pezinho. A doença, de origem
africana, ataca especialmente
crianças negras e, quando não
mata, provoca atrasos no crescimento e infecções repetidas.
São dois exemplos que ilustram
o peso do lobby, exercido no sentido de se organizar e brigar pelos
direitos. No caso da fibrose cística, muito se deve ao empresário
curitibano Sérgio Sampaio, que
não se conformou com a perspectiva de alguns anos de vida para
seu filho. O filho tem hoje 15 anos
e toca a vida como seus colegas,
estuda e pratica esportes.
Em 1986, quando a dengue fazia
vítimas na Baixada Fluminense e
ninguém sabia o que era, associações de moradores fecharam o
principal acesso ao Rio, exigindo
providências das autoridades.
O episódio é relatado pelo sanitarista Sérgio Arouca, que hoje dirige a Secretaria de Gestão Participativa do Ministério da Saúde.
Sua função é justamente a de integrar ações de governo com a participação dos cidadãos. "Algumas
organizações populares chegam a
ter mais força do que o Estado."
Na última sexta-feira, quem
passou pelo Masp da avenida
Paulista, em São Paulo, viu dezenas de pessoas pintando, dançando e cantando. Prestando atenção, notava-se que eram no geral
idosos com tremores nas mãos ou
dificuldades na fala. Era uma "festa" dos portadores da doença de
Parkinson, que comemoravam o
seu dia internacional e lembravam que, mesmo doentes, podiam manter várias atividades.
"Desde o ano passado, conseguimos, em lei, que o governo nos
garanta a medicação que custaria
ao paciente R$ 500 ao mês", diz o
advogado Samuel Grossmann,
presidente da Associação Brasil
Parkinson. A associação foi fundada em 1985 por Marylandes
Grossmann, também vítima da
doença, que no ano passado precisou deixar o comando da entidade. No Brasil, há cerca de 180
mil doentes de Parkinson organizados em seis capitais. Também
na sexta, na Assembléia Legislativa, Samuel Grossmann cobrou do
governo o fato de a lei do deputado Hamilton Pereira (PT-SP) ainda "não estar em prática".
Também na sexta, o navegador
John Dennis, que competiu na regata Around Alone, aportou em
São Paulo com o título de "embaixador do diabetes". Diabético há
seis anos, ele faz uma espécie de
"globalização" dos movimentos
de pacientes, encorajando-os a
monitorarem seu tratamento assim como monitora seu barco.
No Brasil, há associações de diabéticos em dezenas de cidades e
em todos os Estados. Uma das
mais antigas nasceu no Rio há 30
anos.
"Educação terapêutica"
"Os pacientes de doenças crônicas são os que mais se beneficiam
das associações, pois, além de informações, ele precisa aprender a
se medicar e a adotar certas práticas de vida", diz a médica Laurenice Pereira Lima, do Ministério
da Saúde. A médica chama essa
prática de "educação terapêutica", necessária para que o paciente aceite sua doença, melhore sua
auto-estima, mude hábitos e siga
corretamente o tratamento, às vezes pela vida toda.
Hoje, no Brasil, estima-se que
existam 5 milhões de diabéticos, e
quase todos do tipo 2, que aparece
com a idade e tem a ver com o sedentarismo e a obesidade.
Quase todos os Estados têm um
fórum de patologias, representado no Conselho Estadual de Saúde. O de São Paulo tem representantes de cerca de 20 doenças, as
mais conhecidas e prevalentes como o diabetes, a hemofilia, a deficiência física e mental, os renais
crônicos, a esclerose múltipla e a
paralisia cerebral. Mas há também patologias menos conhecidas, como o lúpus, a talassemia, a
"doença de Wilson" e os portadores de distúrbios do crescimento.
O Movimento de Portadores de
Esclerose Múltipla (Mopem), do
Estado de São Paulo, reúne vítimas de uma doença neurológica
que se manifesta de diversas maneiras, de distúrbios motores a
problemas visuais, e que afeta cerca de 2.000 pessoas no Estado.
O movimento em São Paulo foi
fundado e é presidido por Cleuza
de Carvalho Miguel, 54, que há 23
anos é portadora da doença. "Em
97, conseguimos que o governo
nos garantisse a medicação que
custaria a cada um de nós
R$ 3.000 por mês", diz Cleuza Miguel. Para a maioria dos pacientes, o remédio impede os surtos e
garante uma vida normal.
Doença milenar
O Fórum Nacional é integrado
por representantes de 32 entidades, mas, na última reunião, na
semana passada, só estiveram 19.
"Problemas financeiros", resume
Artur Custódio Moreira de Souza,
coordenador nacional do Morhan, Movimento de Reintegração
das Pessoas Atingidas pela Hanseníase e representante dessa entidade no Fórum de Patologias.
O fórum tem seis representantes entre os cerca de 50 que formam o Conselho Nacional de
Saúde, órgão deliberativo e de
controle social do Ministério da
Saúde. É por esse canal que os representantes conseguem mudanças nas políticas públicas.
O Morhan é um dos movimentos mais ativos e organizados,
apesar de a hanseníase ser uma
doença milenar, "de pobre", cheia
de estigma e que cresce no caldo
da desinformação. O Brasil é o segundo país em número de doentes, só depois da Índia, e 45 mil
novos casos ocorrem a cada ano.
Desses, 3.000 ficam com sequelas.
O empenho de Artur de Souza
transformou o movimento num
dos mais ativos, com o apoio de
artistas e cerca de cem associações
em todo o país. A rede montada
identificou, por exemplo, que nos
últimos meses faltou remédios
em Tocantins, embora a droga seja doada pela Organização Mundial da Saúde, diz Souza.
O exemplo da Aids
A patologia que mais ganhos teve com a organização das entidades civis foi a Aids, de longe. São
cerca de 600 ONGs no país, 350
delas só no Estado de São Paulo,
todas diretamente relacionadas
com o HIV/Aids. Diferentemente
da hanseníase, que ganhou visibilidade com a militância que chegava de fora da doença, na Aids as
lideranças eram as próprias vítimas. Filhos da classe média, com
visibilidade na mídia, força política, conta bancária e experiência
militante, os grupos atingidos pela Aids rapidamente se mobilizaram em muitos países.
No Brasil, "infiltraram-se" nos
órgãos de saúde e foram para as
ruas, conseguindo em lei o fornecimento de medicamentos para
todos. São os únicos pacientes
que podem contar com todos os
medicamentos disponíveis lá fora. Na última sexta-feira, num
encontro do Fórum de ONG-Aids, os participantes reivindicavam o acesso ao T-20, nova droga
da Roche que ainda aguarda
aprovação nos EUA e na Europa.
Refinamento, as ONGs-Aids estão pressionando os laboratórios
para que ampliem suas pesquisas
em novas drogas e com menos
efeitos colaterais.
"Nossa função agora é levar esse
conhecimento e essa prática a representantes de outras patologias", diz o filósofo Eduardo Barbosa, 41, presidente do Fórum de
ONGs de São Paulo.
Não há uma explicação clara,
mas várias enfermidades com
grande número de pacientes -o
câncer, especialmente- são pouco organizadas. Limitam-se a grupos de mastectomizados -mulheres que perderam a mama- e
solidários ao câncer infantil. "Talvez porque no Brasil a doença ainda tenha um forte estigma", diz
Maria Tereza Cruz Lourenço, diretora do departamento de psiquiatria e de psicologia do Hospital do Câncer. "Há mais solidariedade do que organização dos pacientes", diz Sérgio Arouca. "Mas
é preciso mudar para conquistar
os direitos", ele afirma. "Há quimioterápicos de primeira geração
disponíveis lá fora que o governo
ainda não compra."
Texto Anterior: Há 50 anos Próximo Texto: Mortes Índice
|