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MAUS-TRATOS DISFARÇADOS
Proprietários mentem e fazem exigências, mas dão dados falsos e acabam por desaparecer
Donos de animais abandonam cães e gatos em pet shops
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA
Paraísos de consumo da indústria animal, os pet shops da cidade
de São Paulo estão se transformando em orfanatos de cães de
raça. Ao contrário das "desovas"
de filhotes em portas de clínicas,
hospitais veterinários, parques e
ONGs (organizações não-governamentais) de defesa animais,
quando a autoria é desconhecida,
neste novo tipo de abandono,
chamado premeditado, sabe-se
quem o cometeu, só não há como
localizá-lo.
A cena segue quase sempre o
mesmo script: o cliente chega
com o bicho no colo, demonstra
afeto, faz exigências, mil recomendações e promete voltar horas depois para buscá-lo. Nunca
mais dá as caras. Geralmente, fornece telefone e endereço falsos.
Nos últimos seis meses, dois
cockers e dois poodles ficaram à
espera de seus donos, após banho
e tosa no pet shop Morde Cão, em
São Paulo. Para tentar coibir novos casos de abandono, a loja passou a exigir RG, CPF e comprovante de residência para clientes
sem cadastro. O número do telefone é checado na hora.
"É desesperador você acompanhar a ansiedade de um animal
esperando pelo dono", confessa a
veterinária Letícia Satiko, 26, que
conseguiu encaminhar para a
adoção os quatro cães. Um deles,
o cocker Billy, de 1 ano, ficou com
a auxiliar de serviços gerais do
próprio pet shop, Jane Laurelli,
33. "Os meus filhos estavam loucos por um cãozinho. Billy só
trouxe alegria para minha casa."
Nem sempre casos assim têm
um final feliz. No hotel Parque
Canino Dog World, cinco cães
abandonados, entre eles um border collie e uma lhasa apso, estão à
espera de adoção. Todos deram
entrada como hóspedes, mas seus
donos não pagaram as diárias
nem voltaram lá para buscá-los.
Um abandono premeditado a
cada 60 dias é registrado no hotel.
"É um problema gravíssimo", diz
o dono, o veterinário Dan Wroblewski, 43. "Infelizmente, a adoção não é um direito de todos os
bichos abandonados. Animais
com problemas de saúde ou idade
avançada, por exemplo, são muito rejeitados. Ninguém os quer."
Para Maurício Esteves Coca, 40,
presidente do Ipab (Instituto de
Proteção aos Animais do Brasil),
esse tipo de ação é executada por
um novo perfil de abandonador.
"Gente de classe média e alta que
não tem noção de posse responsável. Eles tratam o bicho como um
brinquedinho de luxo", alerta.
Há situações em que o cliente
chega a pagar a conta do banho e
da tosa antes do serviço só para se
livrar do animal, como aconteceu
no começo deste ano com um
shih tzu abandonado no Pet Center Marginal. "Ligamos avisando
que o animal já estava pronto,
mas ele disse que não o queria
mais, mudou de telefone e sumiu
do mapa. Por sorte, conseguimos
um lar para o bicho", conta Roseli
Figueiredo, 45, responsável pelo
setor. O cãozinho foi adotado por
um funcionário do próprio banho
e tosa, Givaldo Assunção, 22, que
batizou o cão de Eiry, hoje com
quatro anos. Dois meses atrás, um
yorkshire teve o mesmo destino.
Desta vez, nem a conta foi paga.
É bom lembrar que os casos de
abandono premeditado não se
restringem aos "salões de beleza".
Há relatos de clientes que levam
os animais para o veterinário examinar e não retornam. Dois meses atrás, a filhote Kika Maria, sem
raça definida, foi deixada desnutrida, com pulgas e carrapatos no
pet shop Amor às Lambidas.
Recuperada, Kika Maria esperou em vão durante um mês o retorno do dono. Enquanto isso não
acontecia, ela passava os dias ao
lado de Daniele Kühl Fincatti, 24,
na clínica. À noite, ela ia para a casa da veterinária. Duas semanas
atrás, Kika Maria foi finalmente
adotada pela empresária Patrícia
Correa, 26. "Estava no cabeleireiro quando descobri que a cachorra estava disponível. Voltei para
casa com Kika Maria no colo."
Sorte quando alguém faz a adoção, mas muitas clínicas e pet
shops não conseguem conter a
demanda de animais abandonados, segundo a ambientalista Angela Caruso, 50, presidente do
Quintal de São Francisco, entidade que abriga e cuida de cães e gatos abandonados. "As próprias
clínicas acabam praticando eutanásia. Não têm onde colocar tantos bichos", alerta.
Para Angela, o problema do
abandonado em São Paulo é crítico, reflexo de um crescimento desordenado do segmento de animais domésticos. Cerca de 60 cães
e gatos são recolhidos das ruas da
cidade diariamente pelo CCZ
(Centro de Controle de Zoonoses); 80% deixam de ser resgatados pelos donos e são sacrificados, segundo Noemia Tucunduva
Paranhos, 37, assessora da direção da repartição. O abandono de
animais, lembra ela, é considerado crime ambiental por maus-tratos, com pena de detenção de
três meses a um ano, além de multa a ser fixada pelo juiz.
Estimativa do Ipab mostra que,
de cada cem cães e gatos adquiridos em São Paulo, ao menos 50
são abandonados de diferentes
formas num prazo de até dois
anos e meio. Números oficiais e
ONGs ainda não computam o
percentual de abandono premeditado, mas é inegável que ele vem
crescendo.
Um dos motivos é o desemprego e a crise econômica. Quando o
orçamento aperta, o bicho de estimação também entra na lista de
itens "cortáveis", compara Maurício Esteves, do Ipab.
Na clínica Interlagos, um poodle operado no tórax após ser
atropelado ficou 30 dias esperando o dono. "O cliente disse que
não tinha como pagar a conta e
não queria o animal de volta, como se fosse um produto descartável", lembra a veterinária Regina
Adan, 40. No final do ano passado, até um chow chow, uma raça
cara e originária da China, foi
abandonado na hora da consulta.
"O dono saiu com a desculpa de ir
buscar dinheiro em casa e nunca
mais apareceu", conta Regina.
O "boom" da indústria pet
transformou o animal doméstico
em objeto de consumo, explica
Nina: "Determinadas raças se tornam grifes e viram mania, mas
tempos depois ficam fora de moda. Muita gente compra só por
impulso, sem nenhuma reflexão.
Irresponsáveis, abandonam o bicho em lugares criados para atender também a seus caprichos".
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