São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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MAUS-TRATOS DISFARÇADOS

Proprietários mentem e fazem exigências, mas dão dados falsos e acabam por desaparecer

Donos de animais abandonam cães e gatos em pet shops

ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA

Paraísos de consumo da indústria animal, os pet shops da cidade de São Paulo estão se transformando em orfanatos de cães de raça. Ao contrário das "desovas" de filhotes em portas de clínicas, hospitais veterinários, parques e ONGs (organizações não-governamentais) de defesa animais, quando a autoria é desconhecida, neste novo tipo de abandono, chamado premeditado, sabe-se quem o cometeu, só não há como localizá-lo.
A cena segue quase sempre o mesmo script: o cliente chega com o bicho no colo, demonstra afeto, faz exigências, mil recomendações e promete voltar horas depois para buscá-lo. Nunca mais dá as caras. Geralmente, fornece telefone e endereço falsos.
Nos últimos seis meses, dois cockers e dois poodles ficaram à espera de seus donos, após banho e tosa no pet shop Morde Cão, em São Paulo. Para tentar coibir novos casos de abandono, a loja passou a exigir RG, CPF e comprovante de residência para clientes sem cadastro. O número do telefone é checado na hora.
"É desesperador você acompanhar a ansiedade de um animal esperando pelo dono", confessa a veterinária Letícia Satiko, 26, que conseguiu encaminhar para a adoção os quatro cães. Um deles, o cocker Billy, de 1 ano, ficou com a auxiliar de serviços gerais do próprio pet shop, Jane Laurelli, 33. "Os meus filhos estavam loucos por um cãozinho. Billy só trouxe alegria para minha casa."
Nem sempre casos assim têm um final feliz. No hotel Parque Canino Dog World, cinco cães abandonados, entre eles um border collie e uma lhasa apso, estão à espera de adoção. Todos deram entrada como hóspedes, mas seus donos não pagaram as diárias nem voltaram lá para buscá-los.
Um abandono premeditado a cada 60 dias é registrado no hotel. "É um problema gravíssimo", diz o dono, o veterinário Dan Wroblewski, 43. "Infelizmente, a adoção não é um direito de todos os bichos abandonados. Animais com problemas de saúde ou idade avançada, por exemplo, são muito rejeitados. Ninguém os quer."
Para Maurício Esteves Coca, 40, presidente do Ipab (Instituto de Proteção aos Animais do Brasil), esse tipo de ação é executada por um novo perfil de abandonador. "Gente de classe média e alta que não tem noção de posse responsável. Eles tratam o bicho como um brinquedinho de luxo", alerta.
Há situações em que o cliente chega a pagar a conta do banho e da tosa antes do serviço só para se livrar do animal, como aconteceu no começo deste ano com um shih tzu abandonado no Pet Center Marginal. "Ligamos avisando que o animal já estava pronto, mas ele disse que não o queria mais, mudou de telefone e sumiu do mapa. Por sorte, conseguimos um lar para o bicho", conta Roseli Figueiredo, 45, responsável pelo setor. O cãozinho foi adotado por um funcionário do próprio banho e tosa, Givaldo Assunção, 22, que batizou o cão de Eiry, hoje com quatro anos. Dois meses atrás, um yorkshire teve o mesmo destino. Desta vez, nem a conta foi paga.
É bom lembrar que os casos de abandono premeditado não se restringem aos "salões de beleza". Há relatos de clientes que levam os animais para o veterinário examinar e não retornam. Dois meses atrás, a filhote Kika Maria, sem raça definida, foi deixada desnutrida, com pulgas e carrapatos no pet shop Amor às Lambidas.
Recuperada, Kika Maria esperou em vão durante um mês o retorno do dono. Enquanto isso não acontecia, ela passava os dias ao lado de Daniele Kühl Fincatti, 24, na clínica. À noite, ela ia para a casa da veterinária. Duas semanas atrás, Kika Maria foi finalmente adotada pela empresária Patrícia Correa, 26. "Estava no cabeleireiro quando descobri que a cachorra estava disponível. Voltei para casa com Kika Maria no colo."
Sorte quando alguém faz a adoção, mas muitas clínicas e pet shops não conseguem conter a demanda de animais abandonados, segundo a ambientalista Angela Caruso, 50, presidente do Quintal de São Francisco, entidade que abriga e cuida de cães e gatos abandonados. "As próprias clínicas acabam praticando eutanásia. Não têm onde colocar tantos bichos", alerta.
Para Angela, o problema do abandonado em São Paulo é crítico, reflexo de um crescimento desordenado do segmento de animais domésticos. Cerca de 60 cães e gatos são recolhidos das ruas da cidade diariamente pelo CCZ (Centro de Controle de Zoonoses); 80% deixam de ser resgatados pelos donos e são sacrificados, segundo Noemia Tucunduva Paranhos, 37, assessora da direção da repartição. O abandono de animais, lembra ela, é considerado crime ambiental por maus-tratos, com pena de detenção de três meses a um ano, além de multa a ser fixada pelo juiz.
Estimativa do Ipab mostra que, de cada cem cães e gatos adquiridos em São Paulo, ao menos 50 são abandonados de diferentes formas num prazo de até dois anos e meio. Números oficiais e ONGs ainda não computam o percentual de abandono premeditado, mas é inegável que ele vem crescendo.
Um dos motivos é o desemprego e a crise econômica. Quando o orçamento aperta, o bicho de estimação também entra na lista de itens "cortáveis", compara Maurício Esteves, do Ipab.
Na clínica Interlagos, um poodle operado no tórax após ser atropelado ficou 30 dias esperando o dono. "O cliente disse que não tinha como pagar a conta e não queria o animal de volta, como se fosse um produto descartável", lembra a veterinária Regina Adan, 40. No final do ano passado, até um chow chow, uma raça cara e originária da China, foi abandonado na hora da consulta. "O dono saiu com a desculpa de ir buscar dinheiro em casa e nunca mais apareceu", conta Regina.
O "boom" da indústria pet transformou o animal doméstico em objeto de consumo, explica Nina: "Determinadas raças se tornam grifes e viram mania, mas tempos depois ficam fora de moda. Muita gente compra só por impulso, sem nenhuma reflexão. Irresponsáveis, abandonam o bicho em lugares criados para atender também a seus caprichos".


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